11 de setembro de 2015 | 16h09
As luzes da plateia se apagam e o silêncio se instala. O palco ganha uma iluminação suave e uma bela melodia entoada por vozes masculinas começa a ser ouvida, juntando-se logo em seguida o contracanto de vozes femininas. Rapazes e moças com trajes feitos de tecido barato da cor bege vão povoando espaçada e lentamente o cenário, com uma parte elevada mais ao fundo, todo ele revestido de sacos de estopa. A música e as primeiras cenas surpreendem os mais de mil espectadores ali presentes, sentados nas poltronas e no chão dos corredores. Nenhum deles imaginara deparar com tamanha beleza que três dezenas de rapazes e moças estavam a fabricar naquele palco. Ninguém pudera supor estar a participar de uma noite histórica no campus universitário da Rua Monte Alegre, no alto das Perdizes, na capital paulista, 50 anos atrás. O coral cessa seu canto e um foco de luz acompanha o personagem que vai narrar uma tragédia, que não é apenas dele:
O meu nome é Severino,
não tenho outro de pia. (...)
Somos muitos severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
A encenação de Morte e Vida Severina, o auto de Natal de João Cabral de Melo Neto, musicado por Chico Buarque de Holanda, marcava o surgimento do grupo Tuca (Teatro da Universidade Católica), nome depois incorporado pelo local, originalmente batizado de Auditório Tibiriçá, que também se inaugurava na ocasião.
O mesmo entusiasmo e as mesmas emoções vividos naquela noite de 11 de setembro de 1965 contagiariam milhares de espectadores que lotaram durante meses o teatro da PUC e também teatros do Rio de Janeiro, de Curitiba, de Manaus, de cidades do interior paulista, e do outro lado do Atlântico. Em abril de 1966, a consagração de Morte e Vida se evidenciaria ainda mais com a conquista, na França. do Grande Prêmio do Festival Mundial de Teatro Universitário, realizado em Nancy, bem como com a publicação de críticas igualmente entusiásticas nos jornais Le Monde e Le Figaro. A láurea e a intensa repercussão obtidas levaram o então ministro francês da Cultura, André Malraux, a convidar o grupo para fazer a abertura do Festival das Nações, no Teatro Odéon, em Paris - a mais importante mostra teatral de então, reunindo importantes grupos profissionais de vários países. Foram duas apresentações de um grupo amador naquele templo do teatro, com seus assentos inteiramente ocupados por franceses e também por dezenas de brasileiros exilados na Cidade Luz, expulsos de seu País pelo golpe militar de 1964.
Depois da França, seria a vez de Portugal, ainda submetido à ditadura salazarista, conhecer o trabalho dos jovens do TUCA. Foram diversas apresentações em Lisboa, no teatro da Avenida da Liberdade. As cidades do Porto e de Coimbra também viram Morte e Vida Severina. A temporada portuguesa, para a alegria e o orgulho do grupo, contou com a presença de João Cabral de Melo Neto, então cônsul do Brasil em Berna, na Suíça. O poeta já assistira a apresentação inicial de Nancy. Mais tarde, afirmaria que não conseguia mais reler seu auto de Natal sem associá-lo à música de Chico Buarque. João Cabral se dizia anti-musical e Chico, no aceno do crítico literário Nogueira Moutinho, viu sua música ir nascendo na medida em que avançava na leitura e na releitura dos versos do poeta pernambucano.
A resistência à ditadura, o combate pela liberdade e pela redução das desigualdades sociais e regionais empolgavam a juventude universitária daqueles anos, com um vigor e com uma extensão admiráveis. O TUCA não foi um exemplo solitário. Serviu de incentivo para que mais grupos de teatro universitário (Tusp - Teatro da Universidade de São Paulo, Tese - Teatro Sedes Sapientiae, Tema - Teatro Mackenzie, Tuca-Rio) e outros surgissem em diversas cidades. A efervescência cultural tomara conta do País naqueles tempos, pré e pós o abril de 1964. A camisa de força imposta pelo regime de exceção não conseguira refrear o entusiasmo da juventude estudantil, até que a brutalidade do AI-5, de 13 de dezembro de 1968, se instalasse e passasse a fazer vítimas entre os que ousassem discordar. Tinha início o período mais negro do regime militar a que foi submetido o
Mas antes, já no governo Kubitschek, vale registrar que o Brasil vivera o que se chamou de " anos dourados", com resultados notáveis na economia, na literatura, no teatro, na música popular, com o advento da bossa nova, e até no futebol, com a conquista de sua primeira Copa do Mundo, em 1958. O País se livrara do que Nelson Rodrigues intitulou de complexo de vira-lata, passando a sorrir e a acreditar num futuro alvissareiro.
1965/2015. Neste meio-século a miséria não deu tréguas, apesar de programas voltados para sua extinção e dos avanços científicos e tecnológicos obtidos no período. Nos dias de hoje, o que se vê é sua presença em escala crescente, até mesmo em nações do chamado Primeiro Mundo. A migração de Severinos, especialmente para a periferia das grandes cidades, não é mais um fenômeno nosso. Sua pungente dramaticidade permanece atual, a emocionar corações e mentes, como ocorreu naquele tempo distante, com a encenação do auto de Natal de João Cabral. O Natal não mudou e tampouco a imensa quantidade de retirantes em busca da dignidade a que têm direito como pessoas humanas: trabalho, moradia, saúde, educação e acesso aos bens morais e também aos bens culturais.
No tempo presente, há abundâncias em vários campos, mas insuficientes para encobrir o mal-estar, perceptível com mais nitidez em alguns países do Ocidente. As causas são várias. Suas origens e consequências têm motivado diagnósticos também vários, como a do antropólogo americano Clifford Geertz (1926-2006), ex-professor da Universidade Princeton e pesquisador de seu Instituto de Estudos Avançados. Para ele, o mundo contemporâneo presencia a cavalgada de quatro cavaleiros montados no secularismo, no racionalismo, no relativismo e no nacionalismo, com subprodutos vários, como a exacerbação do consumismo, a concentração incessante da renda em um número cada vez menor de pessoas e a redução e/ou insuficiência dos pesos e contrapesos necessários ao avanço do processo civilizatório.
É certo que a angústia, o desânimo, a desesperança não são novidade na história humana. No Brasil, ainda pagamos por erros ancestrais, como a permanência por três séculos do regime escravocrata e pelo patrimonialismo que nos marca desde os primórdios do período colonial. Mas não imaginávamos que chegaríamos a ser tão vilipendiados, como vêm revelando as investigações sobre inauditos escândalos na área pública. É uma mostra inequívoca da má qualidade de grande parte de nossa elite, de nossos políticos e de nossos governantes. Lorde Gladstone, político liberal na Inglaterra do século 19, dizia que falta aos homens honestos a ousadia que caracteriza os canalhas para chegar ao poder.
O historiador Evaldo Cabral de Melo não se ilude sobre o nosso passado. E provocou um solavanco na historiografia pátria, ao negar que existam enigmas para nos explicar. "O Brasil é metade falta de caráter e corrupção, e metade incompetência. Você pode explicar quase tudo o que acontece no Brasil por uma dessas duas metades do mesmo fenômeno" - foi o cáustico diagnóstico do irmão mais novo do poeta João Cabral de Melo Neto.
Boas lembranças. Más lembranças. Tempos propícios a reflexões. E também para voltar a emocionar os mais velhos e para informar os mais novos sobre a perenidade destes dois belos momentos: a inauguração do TUCA e a encenação de "Morte e Vida Severina", na noite de 11 de setembro de 1965.
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