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Tuca e 'Morte e Vida Severina' fazem 50 anos

Ex-jornalista do 'Estado', Melchíades Jr., participou da primeira montagem

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Por Redação
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As luzes da plateia se apagam e o silêncio se instala. O palco ganha uma iluminação suave e uma bela melodia entoada por vozes masculinas começa a ser ouvida, juntando-se logo em seguida o contracanto de vozes femininas. Rapazes e moças com trajes feitos de tecido barato  da cor bege  vão povoando espaçada e lentamente o cenário,  com uma parte elevada mais ao fundo, todo ele revestido de sacos de estopa. A música e as primeiras cenas surpreendem os mais de mil espectadores ali presentes, sentados nas poltronas e no chão dos corredores. Nenhum deles imaginara deparar com  tamanha beleza que  três dezenas de rapazes e moças estavam a fabricar naquele palco. Ninguém pudera supor estar a participar de uma noite histórica no campus universitário da Rua Monte Alegre, no alto das Perdizes, na capital paulista, 50 anos atrás. O coral cessa seu canto e um foco de luz acompanha o personagem que vai narrar uma tragédia, que não é apenas dele:                O meu nome é Severino,              não tenho outro de pia. (...)             Somos muitos severinos             iguais em tudo na vida:             na mesma cabeça grande             que a custo é que se equilibra,             no mesmo ventre crescido             sobre as mesmas pernas finas,             e iguais também porque o sangue             que usamos tem pouca tinta.   A encenação de Morte e Vida Severina, o auto de Natal de João Cabral de Melo Neto, musicado por Chico Buarque de Holanda, marcava o surgimento do grupo Tuca (Teatro da Universidade Católica), nome depois incorporado pelo local, originalmente batizado de Auditório Tibiriçá, que também se inaugurava na ocasião.

Encenação de 'Morte e Vida Severina', em 1967. Foto: Acervo Estadão

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O mesmo entusiasmo e as mesmas emoções vividos naquelanoite de 11 de setembro de 1965 contagiariam milhares de espectadores que lotaram durante meses o teatro da PUC e tambémteatros do Rio de Janeiro, de Curitiba, de Manaus, de cidades do interior paulista, e do outro lado do Atlântico. Em abril de 1966, a consagração de Morte e Vida se evidenciaria ainda mais com a conquista, na França. do Grande Prêmio do Festival Mundial de Teatro Universitário, realizado em Nancy, bem como com a publicação decríticas igualmente entusiásticasnos jornais Le Monde e Le Figaro. A láurea e a intensa repercussãoobtidas levaram o então ministro francês da Cultura, André Malraux, a convidar o grupo para fazer a abertura do Festival das Nações, no Teatro Odéon, em Paris - a mais importante mostra teatral de então, reunindo importantes grupos profissionais de vários países. Foram duas apresentações de um grupo amador naquele templo do teatro, com seus assentosinteiramente ocupados por franceses e também por dezenas de brasileiros exilados na Cidade Luz, expulsos de seu País pelo golpe militar de 1964.

Depois da França, seria a vez de Portugal, ainda submetido à ditadura salazarista,conhecer o trabalho dos jovens do TUCA. Foram diversas apresentações em Lisboa, no teatro da Avenida da Liberdade. As cidades do Porto e de Coimbra também viram Morte e Vida Severina. A temporada portuguesa, para a alegria e o orgulho do grupo,contou com a presença deJoão Cabral de Melo Neto, então cônsul do Brasil em Berna, na Suíça. O poeta já assistira a apresentação inicial de Nancy. Mais tarde, afirmaria quenão conseguia mais reler seu auto de Natal sem associá-lo à música de Chico Buarque.João Cabral se dizia anti-musical e Chico, no aceno do crítico literário Nogueira Moutinho, viu sua música ir nascendo na medida em que avançava na leitura e na releiturados versos do poeta pernambucano.   A resistência à ditadura, o combate pela liberdade e pela redução das desigualdades sociais e regionais empolgavam a juventude universitária daqueles anos, com um vigor e com uma extensão admiráveis. O TUCA não foi um exemplo solitário. Serviu deincentivo para que mais grupos de teatro universitário (Tusp - Teatro da Universidade de São Paulo, Tese - Teatro Sedes Sapientiae,Tema - Teatro Mackenzie, Tuca-Rio) e outros surgissem em diversas cidades. A efervescência culturaltomara conta do País naqueles tempos, pré e pós o abril de 1964. A camisa de força imposta pelo regime de exceção não conseguirarefrear o entusiasmo da juventude estudantil, até que a brutalidadedo AI-5, de 13 de dezembro de 1968, se instalasse e passasse a fazer vítimas entre os que ousassem discordar. Tinha início o período mais negro do regime militar a que foi submetido o 

Mas antes, já no governo Kubitschek, vale registrar que o Brasil vivera o que se chamou de " anos dourados", com resultados notáveis na economia, na literatura, no teatro, na música popular, com o advento da bossa nova, e até no futebol, com a conquista de sua primeira Copa do Mundo, em 1958. O País se livrara do que Nelson Rodrigues intitulou de complexo de vira-lata,passandoa sorrir e a acreditar num futuro alvissareiro.   1965/2015. Neste meio-século a miséria não deu tréguas, apesar de programas voltados para sua extinção e dos avanços científicos e tecnológicosobtidos no período. Nos dias de hoje, o que se vê é sua presençaem escala crescente, até mesmoem nações do chamado Primeiro Mundo. A migração de Severinos, especialmente para a periferia das grandes cidades,não é mais um fenômeno nosso. Sua pungente dramaticidade permanece atual, a emocionar corações e mentes, comoocorreu naquele tempodistante,com a encenação do auto de Natal de João Cabral. O Natal não mudou e tampouco a imensa quantidade de retirantes em busca da dignidade a que têm direito como pessoas humanas: trabalho, moradia, saúde, educação eacessoaos bens morais e também aos bens culturais. 

No tempo presente,há abundâncias em vários campos, mas insuficientes para encobriro mal-estar,perceptívelcom maisnitidezem algunspaíses do Ocidente. As causas são várias. Suas origens e consequências têm motivado diagnósticos também vários, como a do antropólogo americano Clifford Geertz (1926-2006), ex-professorda UniversidadePrinceton epesquisador de seu Instituto de Estudos Avançados. Para ele, o mundo contemporâneo presencia a cavalgada de quatro cavaleiros montados no secularismo, no racionalismo, no relativismo e no nacionalismo, com subprodutos vários, como a exacerbação do consumismo, a concentração incessante da renda em um número cada vez menor de pessoas e a redução e/ou insuficiência dos pesos econtrapesosnecessários ao avanço doprocesso civilizatório. 

É certoque a angústia, o desânimo, a desesperança não são novidade na história humana. No Brasil, ainda pagamos por erros ancestrais, como a permanência por três séculos do regime escravocrata e pelopatrimonialismo que nos marcadesde os primórdios do período colonial. Mas não imaginávamos que chegaríamos a ser tão vilipendiados, como vêm revelandoas investigaçõessobre inauditos escândalosna área pública. É uma mostra inequívocada má qualidade de grande parte de nossa elite, de nossospolíticos e de nossos governantes. Lorde Gladstone, político liberal na Inglaterra do século 19, dizia que falta aos homens honestos a ousadia que caracteriza os canalhas para chegar ao poder. 

O historiador Evaldo Cabral de Melo não se ilude sobre onosso passado. E provocou um solavanco na historiografia pátria, ao negar que existam enigmas para nos explicar. "O Brasil é metade falta de caráter e corrupção, e metade incompetência. Você pode explicar quase tudo o que acontece no Brasil por uma dessas duas metades do mesmo fenômeno" - foi o cáustico diagnóstico do irmão mais novo do poeta João Cabral de Melo Neto.

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Boas lembranças. Más lembranças. Tempos propícios a reflexões. E também para voltar a emocionar osmais velhos eparainformar os mais novos sobre aperenidade destes dois belos momentos:a inauguração doTUCA e a encenação de "Morte e Vida Severina", na noite de 11 de setembro de 1965.

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