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Trilogia revê a Irlanda do século 20

Uma Estrela Chamada Henry abre a série de relatos do Roddy Doyle, o mesmo escritor de Os Commitments, sobre a trajetória do povo irlandês

Por Agencia Estado
Atualização:

Pior que uma infância medíocre e miserável é a infância miserável de um irlandês. O comentário, colhido das memórias do escritor Frank McCourt, poderia sair dos lábios do jovem Henry Smart, o personagem principal do livro Uma Estrela Chamada Henry (Estação Liberdade, 384 páginas, R$ 34), o mais recente livro do irlandês Roddy Doyle. Trata-se da primeira obra de uma trilogia histórica, em que o protagonista nasce em 1901 e sua vida vai se confundir com os principais acontecimentos políticos e sociais da Irlanda ao longo do século 20. Doyle é um escritor singular - três de seus livros foram adaptados para o cinema tanto por Stephen Frears (A Grande Família e O Furgão) como por Alan Parker (Os Commitments - Loucos pela Fama, filme, aliás, que o tornou famoso). Recebeu ainda o Booker Prize, o mais importante prêmio da literatura do Reino Unido, em 1993, por Paddy Clarke Ha Ha Ha (já editado pela Liberdade, assim como O Furgão). Em todos, há o íntimo compromisso de retratar o espírito irlandês, especialmente os párias da sociedade, que buscam desesperadamente uma solução para a fome, vagando entre a marginalidade e a bebida. Mas é em Uma Estrela Chamada Henry que seu estilo seco e direto, permeado de bom humor, atingiu o momento mais alto. O livro conta a história de Henry Smart, garoto que nasce nos esgotos de Dublin, em 1901. As primeiras páginas, além de revelar detalhes da miséria do ambiente, servem para explicar a origem do título. Segundo uma velha lenda da Irlanda, cada estrela no céu corresponde a uma criança que morreu. O trauma de Henry, portanto, é a sombra de vários irmãos que não resistiram à pobreza e agora brilham no céu, provocando o desespero e a loucura de sua mãe, que passa o tempo olhando para cima, hipnotizada pelas estrelas. "A pobreza que descrevo no início tem um significado especial", comentou Doyle, em entrevista à imprensa inglesa. "Mostra que, naquela época, havia milhares de pessoas prontas para morrer, descontentes com o Império Britânico, uma vez que a Irlanda ainda era uma colônia, a única da Europa ocidental." De fato, as primeiras páginas descrevem a relação de Henry com os parentes (além da mãe, Melody, há o pai, também chamado Henry, um assassino de aluguel que não tem uma das pernas e se equilibra em uma muleta) e com o ambiente opressivo: aos 9 anos, torna-se um exímio batedor de carteiras nas ruas de Dublin. A narrativa é ágil, pois Doyle explora com precisão as diferentes sensações infantis diante de uma realidade violenta. Assim, apesar da situação degradante em que vive, Henry Smart consegue colorir a narração com muito humor. A técnica, aliás, é uma especialidade de Roddy Doyle, habituado a deixar a narrativa correr ao sabor do pensamento e das impressões de seus personagens principais. Quando todos os assuntos parecem esgotados, o escritor promove uma mudança radical, que é o ingresso de Henry na luta revolucionária pela independência da Irlanda. Trata-se da última alternativa para Henry: com a morte dos pais e dos irmãos, sozinho e desamparado, ele se une, aos 14 anos, ao Exército de Cidadãos Irlandeses, milícia revolucionária que participa do Levante da Páscoa, em 1916, quando os militantes invadiram o prédio do correio central, no primeiro grande ato pela libertação. Naquela época, os irlandeses lutavam pelo fim do domínio político dos ingleses e por liberdade religiosa - a população da Irlanda é, em sua maioria, católica enquanto grande parte dos ingleses é protestante. As cenas, carregadas de simbolismo para os irlandeses, servem também para Doyle exercitar sua imaginação - quando os rebeldes iniciam o tiroteio contra os militares, Henry Smart surpreende ao mirar sua arma para as vitrines que estão no outro lado da rua, exorcizando assim seu passado medíocre e miserável. Enquanto seus companheiros atiram nos soldados ingleses, ele destrói sapatos, doces, cigarros, chapéus. "Atirei e matei tudo o que me fora negado, todo o comércio e esnobismo que haviam zombado de mim e de outras centenas de milhares atrás de vidro e cadeados, tudo o que era injustiça, iniqüidade e sapatos - enquanto os outros rapazes tiravam nacos dos militares." Calor humano - O sucesso contra o Sexto Regimento de Cavalaria da Reserva é comemorada com euforia, o que permite a Henry desfrutar momentos desconhecidos. "Eu nunca estivera tão próximo das pessoas como agora", afirma. "Estava dividindo o mundo com aqueles homens. Confiava neles; seu calor me iluminava." Mais que a solidariedade até então desconhecida, ele encontra uma proposta para sua vida. Sua estrela passa a brilhar - não no céu, mas em pleno território britânico. Henry Smart torna-se um dos oficiais mais destacados entre os revolucionários e, graças à liberdade de matar, ganha um reconhecimento que o surpreende. O outrora ladrão de carteiras transforma-se em um dos principais homens de Michael Collins, líder irlandês que participou do histórico encontro com o primeiro-ministro inglês Lloyd George, em 1921, quando firmaram o acordo de divisão da Irlanda. O fato é apontado como a semente do conflito que perdura até hoje, entre protestantes e católicos, e que já causou a morte de mais de 4 mil pessoas. A figura carismática de Collins inspirou o diretor Neil Jordan a dirigir, em 1996, o filme "Michael Collins - O Preço da Liberdade", em que Liam Neeson interpreta o papel principal. O charme, porém, sofre um desbotamento no livro de Doyle. A dedicação de Henry à causa libertária transforma-no em um guerrilheiro urbano, treinando táticas que vão provocar a morte dos ingleses. Aos poucos, porém, ele percebe que a situação não mudou mesmo com a independência e que continuará sendo um excluído na nova Irlanda. A constatação é cortante: Henry percebe que se transformara em um assassino sem motivos, como fora seu pai. Seu envelhecimento carrega um pesado impasse sobre a identidade de seu país e o seu próprio. Os próximos dois livros deverão acompanhar a trajetória de Henry até os dias de hoje, quando a República da Irlanda católica ainda busca uma convivência pacífica com a Irlanda do Norte protestante. "Evitei a divisão entre bons e maus que me foi ensinado, mostrando todos como seres humanos", justifica Doyle.

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