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Trilha sonora do passado

De araponga a Juca Chaves, há de tudo no fundo da memória auditiva daquela casa

Por Humberto Werneck
Atualização:

A casa não existe há muito, mas de lá ainda chegam sons, toda uma trilha sobre a qual pode a memória caminhar. Não é polifonia, coisa harmoniosa, é mais cacofonia, emaranhado sonoro que nem por isso fere os ouvidos, e menos ainda o coração de quem contribuiu para engrossar a barulheira. Quem lá viveu disseca sem esforço o novelo ruidoso, e dele destaca os componentes.  O latido, por exemplo, de sucessivos cães que por ali passaram, e dos quais, para mim, ficou o pelo escuro de uma doberman, a Dala, desprovida de cauda, mas não de pedigree ainda mais lustroso. O trinado, vindo de gaiolas (dentro da casa, inclusive, para silencioso desgosto de minha mãe), e também de um viveiro que meu pai, bicho carpinteiro, construiu nos fundos do terreno. Trinado de uma infinidade de bicudos, pintassilgos, curiós, por vezes o martelar de uma araponga. De seu poleiro, junto à porta da cozinha, aberta para o terreiro, o louro esganiçando a compra de um quilo de farinha pra fazer farofa-fá. Aluno, aquele papagaio, da nossa cozinheira mais longeva, a Marisa, canora como poucas, com a qual não aprendeu a cantar Upa, Neguinho, mas de quem arremedava aquilo que, no seu gogó, virou trote nos ouvidos da patroa: “Dona Wanda, telefone!”. Na grande sala em L, foi entronizada um dia, nos começos dos anos 50, uma vitrola – vitrola, não: eletrola, que era como se dizia em Minas –, móvel de pés retorcidos cujo ventre acomodava um rádio, um toca-discos, uma caixa de som e compartimentos verticais onde guardar bolachas, a maioria delas pré-vinil, quebráveis ao menor descuido. Sem a gentileza mínima de fechar as portas da sala, houve uma fase em que eu botava ali para girar, uma, duas, incontáveis vezes, em volume altíssimo, aquele que foi o primeiro disco comprado do meu bolso, considerável rombo na mesada que me dava o pai, o Tutti Frutti de Little Richard, na voz de um moço que acabava de estrear no cinema, em Love me Tender, o tal de Elvis Presley. Depois viriam Juca Chaves, Waldir Calmon, Sergio Endrigo, Nico Fidenco, Rita Pavone, Ray Charles... O rádio da eletrola (como lamento não ter catado para mim aquela preciosidade, como fez na casa dele o Jaime Prado Gouvêa, amigo vitalício, comparsa literário desde os nossos 14 anos, nossos porque apenas cinco dias separam as respectivas chegadas ao mundo, no infeliz momento em que o aparelho foi trocado por algum sem charme)... Mas eu dizia, antes deste interminável parêntese, que o rádio da eletrola nos trazia, boiando no vaivém das ondas curtas, sumindo nos momentos cruciais, o Maracanã com seus Fla-Flus. Também do Rio, as gaiatices do Lauro Borges e do Castro Barbosa no PRK-30, programa que fazia o Dr. Hugo se dobrar de rir. E as radionovelas, com sua sonoplastia improvisada no estúdio, papéis sendo amarfanhados junto ao microfone para informar que os personagens caminhavam sobre folhas secas.  Televisão? Tardou: só em 1960, cinco anos depois da inauguração da pioneira TV Itacolomi, nossos pais decidiram que aquilo não prejudicaria tanto assim a formação dos filhos, cujo número em breve chegaria a 10. Veio então um Philco Predicta, de desenho audacioso, outra relíquia que deixei passar quando foi aposentada, com uma tela que se podia girar para lá e para cá. Foi ali que vi morrer ao vivo um ex-prefeito, em meio a um debate que aliás noutro sentido estava mesmo de matar. Rádios avulsos houve alguns em casa, e neles eu não perdia o Roteiro das Duas, “irradiado”, como se dizia, dos estúdios da Rádio Mineira, sob o comando de Aldair Pinto. Matei aula para conferir de corpo presente como era um mundo que fantasiava, e descobrir, além de um auditório decepcionantemente miúdo, que os comerciais eram lidos na hora, por leitores de papel na mão em torno de um microfone. Não foi naquele dia, infelizmente, que um de meus numerosos primos, não por acaso dos mais “salientes”, por pouco não venceu uma disputa – havia sempre alguma, e daquela vez foi quem comia mais banana em menos tempo. O primo ficou a uma banana prata de levar o ouro. Mas a ideia era falar da trilha sonora de nossa casa apenas, e eis que me embananei e vim parar num auditório de rádio. Se houver ainda espaço (minha sesmaria ficou menor, tenha a delicadeza de lamentar), fique registrado aquilo que mais se ouvia na eletrola da família.  A agulha não estando ocupada com meu Tutti Frutti, mais adiante com o Pat Boone de Bernardine, ou com as molecagens verbais da Canção para Inglês Ver, de Lamartine Babo, na voz do Joel de Almeida, meus pais se aconchegavam para ouvir a Patachou e a Yma Sumac, a Polonaise de Chopin, o Concerto para Piano n.º 1 de Tchaikovski, a Dança Ritual do Fogo do Manuel de Falla. Em inesquecível momento, chegou em acetato um alemão de quem não guardo o nome, e nos deliciávamos ouvindo Ja, ja der Wein ist gut, em que o camarada, tendo bebido além da conta, transita da risadaria às lágrimas. Não é assim a arte, pensava um pivete ali, sentindo-se profundo, sim, a Arte, essa coisa que, segundo dizem, tanto nos alegra como faz chorar?

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