Tributo à criação

O Segundo Arco-Íris Branco, coletânea póstuma de Haroldo de Campos, traz ensaios que se organizam em torno da poesia

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Por Lucia Santaella
Atualização:

O que pode uma resenha senão arranhar palavras diante de um livro póstumo de Haroldo de Campos (1929-2003), um dos maiores poetas do século 20? Um livro apresentado por Davi Arrigucci Jr. e prefaciado por Flora Süssekind, entre os grandes estudiosos e críticos da literatura neste país. Resta-me tentar cumprir o que cabe a uma resenha, graças a minuciosas anotações que me foram gentilmente ofertadas por Leda Tenório da Motta, renomada especialista na obra de Campos. Não há por que ocultar que tive a sorte e o privilégio inigualáveis de ter tido Haroldo como mestre, repetidas vezes. Aquele magno mestre que, começando "por um cálculo ao coração,... à hora dos deméritos diz: Rigor." Um mestre que "trafica em as, madrepérola o abismo, exige ao Azul a explicação: azul".Este é o terceiro livro póstumo de Haroldo de Campos, todos organizados pela viúva, Carmen de Arruda Campos, que soube transformar a melancolia do luto em tributo à criação. O Segundo Arco-Íris Branco indicia que houve um primeiro, publicado pela Imago, em 1997, na Coleção Pierre Menard, dirigida à época por Arthur Nestrovski. O retorno à imagem do arco-íris branco está carregado de significados. Trata-se de referência a Goethe, "o fáustico poeta de Weimar". Numa viagem de repouso a Wiesbaden, à beira dos 65 anos, Goethe "entreviu, nas brumas da manhã, um arco-íris branco". O fenômeno raro lhe trouxe o presságio do rejuvenescimento. De fato, logo depois, viu-se envolvido no arco-íris multiluzcor de uma paixão amorosa que os males do destino tornaram platônica. A existência revivescida pela idealização sublimada do amor deslocou sua energia interior para a plenitude da criação: "A vida sub-rogou-se em texto."Também sexagenário, "numa idade provecta", em 1997, no plenilúnio de sua maturidade nos ofícios da poesia de invenção, crítica, transcriação e poder teórico, mais do que nunca antes e, daí para frente, até a morte, sempre, Haroldo abraçou a pulsão fáustica de manter a enteléquia viva. "Chuva de rosas/destenebrantes/aspirar esse aroma/viva mantê-la viva/a enteléquia... esse fragmento de eternidade." Celebrou-a no seu primeiro Arco-Íris Branco.Este Segundo, póstumo, dá continuidade à tarefa de alimentar com biscoitos finos o conceito goethiano de Weltliteratur (literatura do mundo) em ensaios que percorrem um filão comum: "A poesia, paixão não-exaurida, como o mar valéryano, que sempre recomeça."Tanto quanto o anterior, este livro organiza-se em domínios: hebraico (a Bíblia), hispano-americano e espanhol (Sor Juana, Lezama Lima, Servero Sarduy, Juan Gelman, Juanele Ortiz, Perlongher, Cortázar, Emir R. Monegal, César Vallejo, Juan Brossa), holandês (Van Doesburg), inglês (Swift, Joyce, William Carlos William, Wallace Stevens, John Ashbery, Pound). Está aí evidenciada a rosácea transnacional de algumas das afinidades eletivas de Haroldo, suas escolhas literárias manifestas em capítulos imantados na invenção poética, no obstinado rigor conceitual, no respeito minucioso às fontes de referência, na ética do intelecto e, sobretudo, nas coreografias da dança das linguagens que os processos metamórficos das transcriações haroldianas patenteiam. Na parte final, dedicada à cultura, Haroldo traz à luz a poesia barroca que corre feito rio caudaloso pelos escritos de Lacan: a psicanálise convertida em proesia, a poesia da prosa, lida no trinômio Freud-Joyce-Lacan. Na esteira de Mallarmé, Lacan é um exímio manipulador da sintaxe francesa, elevando "até a extrema potência de linguagem aquilo que, em Freud, era sobretudo um dispositivo de leitura analítica". Por isso mesmo, Haroldo chamou "a intervenção do estilo Lacan, na formação do analista e no evolver do discurso analítico a partir do lado microtonal de Freud, um afreudisíaco introjetado na galáxia de lalíngua". Segue-se um fragmento, "passatempos e matatempos" das Galáxias de Haroldo para, de algum modo, "insinuar a demanda evasiva, rapsódia de lalíngua", compreendida como uma língua enfatizada, tensionada pela função poética, servindo a coisas inteiramente diversas da comunicação. O rigor minimalista da matéria concreta da linguagem, a disseminação barroca das Galáxias e o transluzir luciferino da tradução, todos eles convergem e alquimicamente se fundem nas imagens tão caras a Haroldo de Campos do "branco sobre o branco, no céu dentro do céu". Essa dissolução do branco, em um céu que se aninha dentro do céu, bem expressa a sede infinita que é beber na fonte da poesia. A busca eterna da palavra poética por roçar, na iminência do encontro fugidio - promessa e logro - o que não se pode representar: o âmago que nos escapa das coisas, dos seres, dos sentimentos e da vida. Aparição no desaparecimento: "O âmago do ômega." LUCIA SANTAELLA É PROFESSORA DA PUC-SP, AUTORA, ENTRE OUTROS, DE COMUNICAÇÃO E PESQUISA (BLUECOM) E LINGUAGENS LÍQUIDAS NA ERA DA MOBILIDADE (PAULUS)

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