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Trechos de 'O Sonâmbulo Amador', de José Luiz Passos

Foi um grande desvio que me levou até esse ponto. E o que aconteceu depois é difícil de relatar numa linguagem mais ordenada. Espero que me entendam.

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Por Redação
Atualização:

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Estava na minha cidade, em casa com Heloísa, e um homem queria falar comigo. Como eu não pretendia atender ninguém, ele entrou de qualquer maneira. Zangado com isso, atirei nele com uma pistola de chispas que cegam. Depois me arrependi, pois o homem era o tio de uma antiga professora minha, a dona Valquíria, o que me causou um aborrecimento enorme. De repente, várias pessoas também queriam falar comigo, mas eu de novo não me dispunha a receber ninguém. A maneira bruta como eu tratava as pessoas era revoltante, admito. Daí, a cena muda e já estou aqui perto, no Recife, com Heloísa, ela ainda querendo voltar para mim. Não lembro se reatamos ou não. Saí dali e acabei numa casa parecida com Belavista, onde o meu amigo Marco Moreno era o vizinho. Ele e uns colegas dele davam uma festa com algumas moças, mas não me convidavam. Vendo que não ia fazer parte daquilo, fechei a porta de casa e comecei a cavar um buraco no chão da sala. Depois de me ouvir contando mais ou menos isto, madame Góes riu e disse que, realmente, nos sonhos pouco ou quase nada fazia sentido. Eu, já cansado dessa conversa, da caminhada e do filme, que tinha sido um dramalhão de guerra, apenas balancei a cabeça. Concordei com a opinião dela, sobre os sonhos serem algo sem coerência, muito embora para mim essas visões sejam, de fato, nossas grandes claraboias da noite.

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Escutei uns passos no corredor e fiquei irritado, me pareceu que, mesmo a folia tendo acabado, a clínica ainda estava em confusão. Quando fiz menção de me levantar, a fim de reclamar do barulho, ouvi um berro terrível. Não Odilon, alguém gritou alto. Pelo amor de Deus, tenha pena dos pacientes. Era isso ou mais ou menos isso que diziam. Estaquei na cama com os olhos na porta, que agora alguém sacudia querendo entrar. Não lembro quanto tempo se passou. Mas o desfecho revela bem a diferença entre os rigores do sonho e os da realidade, que quando misturados resultam obviamente na completa confusão da vida.

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O ritmo dos meses passados em Belavista não era o ritmo que, em geral, minha vida costumava ter. Desde o primeiro momento fui induzido ao torpor das vacas. Pastei em busca de uma compreensão qualquer, dessa cura que custava a vir e que, quando viesse, me livraria de quê? Da tristeza. Mas quem não tem uma tristeza para roer em tempo de desânimo ou em dias de chuva? Nas últimas semanas, quando o Ramires finalmente reconheceu meu pedido, mesmo sem que eu lhe pedisse de minha própria boca, fui aos poucos resgatando a clareza das coisas, revendo aqui e ali os pedaços recentes de meu tempo na clínica e, mais ainda, a relação disto com eventos de bem antes. Meu amigo Ramires, sem o aval de doutor Ênio, diminuiu e parou com a medicação. Reagi daquela forma, enjoos fortes e uma tontura com pancadas de suor que me levavam às pias e ao chuveiro do primeiro andar, de onde às vezes o próprio Ramires ia me tirar desacordado. Mas o efeito foi o pretendido. A névoa da indiferença me deixou a cabeça. Tive a impressão de que finalmente meus olhos voltavam a se abrir de todo, querendo o sal e o humor das coisas. Querendo também tragar novamente a tristeza que vai comigo. Pois pode haver riso, de verdade, mesmo no estado mais supremo de uma absoluta má sorte. E é isto que espero provar a todos vocês.

 

ANÁLISE

ANDRÉ DE LEONES

Há o lugar-comum de que estamos sempre recomeçando. Lendo o romance O Sonâmbulo Amador, de José Luiz Passos, a impressão é de que seu narrador e protagonista está, a cada instante, não recomeçando, mas terminando algo. Talvez porque tudo o que acontece no livro, seja real ou não, parece visto de um ponto distante, lançado no tempo. Desde as primeiras linhas, o tom é de encerramento: a história é narrada por alguém com plena consciência da finitude, sua e dos outros.

Não é que Jurandir seja um desses personagens acometidos por uma doença terminal e que, no leito de morte, entregam-se a um redemoinho de lembranças, reavaliando a própria vida e tudo pelo que passaram. Não se trata disso, até porque sua relação com a morte é de outra ordem: ele e a esposa, Heloísa, perderam um filho adolescente.

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Funcionário de uma tecelagem no interior de Pernambuco, nós o encontramos pela primeira vez prestes a fazer uma viagem à capital do estado para resolver uma pendência. Um operário da empresa, um rapaz, sofreu um acidente que o deixou completamente desfigurado. Jurandir tentará interceder por ele, conseguir com que seja amparado legalmente. Ao viajar para Recife, depois de um breve entrevero com uma colega de trabalho e ex-amante, Minie, e de se deparar com o fato de a esposa ter transformado o quarto do filho morto em um escritório, Jurandir surta: interrompe a viagem, incendeia o carro da empresa e, quando o reencontramos tempos depois, está internado em uma instituição psiquiátrica.

O romance é estruturado em quatro partes (ou "cadernos") e um epílogo. A ideia dos cadernos é literal, uma vez que eles seriam preenchidos pelo protagonista quando de sua internação e após. Na clínica, temos o ponto morto do romance, ou o momento em que o personagem precisa colocar tudo o que viveu em perspectiva antes de constatar se há ou não possibilidade de seguir adiante. Ele avalia a própria (in)viabilidade. Ali estão algumas das melhores passagens do livro.

Há um entrelaçamento entre as rememorações, os sonhos que ele descreve a pedido do médico e alguns fatos esparsos do cotidiano, por meio dos quais construímos (e ele reconstruiu) sua persona. Mas não há qualquer forma de gradação. Conforme dissemos há pouco, tudo parece visto de um ponto distante. Histórias, digressões e sonhos se misturam e se espelham, mas, em vez de conferir sentido uns aos outros, refletem suas respectivas ausências de sentido. São como pessoas. Perder um ente é tão absurdo quanto continuar vivo. Não há sentido seja numa coisa, seja noutra.

É complicado colocar sonhos em uma narrativa. Em geral, é um recurso um tanto óbvio para calçar personagens que o autor não consegue sustentar de outro modo. Forçações de barra, portanto. Não é o que acontece em O Sonâmbulo Amador. Mesmo recorrendo continuamente a sonhos e lembranças com uma atmosfera alucinatória (há vários personagens fantasmagóricos, como o amigo de infância de Jurandir, Marco Moreno, e seu pai - preste muita atenção no pai), Passos os utiliza como "um método para tratarmos a ruína das coisas".

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Tudo se esfarelou, e história alguma salvará ninguém - o que é ótimo. Cada desdobramento da narrativa funciona como uma unidade aparentemente autônoma a flutuar nesse vazio que é o próprio Jurandir. Não há sentido intrínseco ou extrínseco a elas. Estão ali, dadas, entregues, ao alcance do leitor, que se interessa e trata de acompanhá-las, ou não. O narrador é um homem em meio a outros homens, vivos e mortos, sonhados e reais, a princípio sem rosto como o jovem operário pelo qual lutará. Ele tem plena consciência da impossibilidade de restituir uma face tanto ao jovem quanto a si mesmo. O rapaz sem rosto espelha o narrador sem rosto, e a compensação que se busca em ambos os casos é de outra ordem. Não é material ou sequer metafísica, mas ética: o que é possível fazer por si e pelo outro? E até que ponto? Jurandir toma conta de si e, ato contínuo, intenta tomar conta do outro, até onde isso é factível: buscar por um encerramento do caso do rapaz e retomar a vida com a esposa. Ele constrói a alteridade por meio da metódica desconstrução de si.

Convém ressaltar que o romance é situado à sombra de um período ditatorial brasileiro. Outro espelhamento: a turbulência externa ecoa a turbulência interna do protagonista. E, por mais difuso que às vezes se apresente, o tempo perpassa todo o romance. O que Jurandir precisa fazer é reencontrar seu lugar nele, é reconhecer o espaço de sua vida em meio às vidas dos outros, estejam eles presentes ou não; ele precisa saber onde começa e, sobretudo, onde termina. E, querendo ou não, sempre terminamos no outro.

ANDRÉ DE LEONES É AUTOR DO ROMANCE "DENTES NEGROS" (ROCCO), ENTRE OUTRAS OBRAS

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