Trecho de <i>O Continente Negro</i>, de Marco Antonio de la Parra

Dramaturgo chileno visita o Brasil para ministrar oficina na Faap

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Por Agencia Estado
Atualização:

No Brasil para ministrar uma oficina de dramaturgia de três dias na Faap, o chileno Marco Antonio de la Parra mostra que suas peças estão nos detalhes, ou melhor, na "teatralidade menor", como ele mesmo gosta de chamar. Na última terça-feira, durante a segunda aula de sua oficina, o autor recebeu a reportagem do Estado: ?Vocês podem entrar, mas nenhuma palavra, silêncio.? O dramaturgo estreou, no último fim de semana, uma de suas peças, O Continente Negro, cujo trecho é possível ser lido a seguir: Trecho de O Continente Negro, de Marco Antonio de la Parra, tradução de Silvia Gomez Marcelo: O que você quer, Natália? Natália: Direto ao assunto... você não mudou nada. Bom... Antes de tudo, queria te ver. Foi gentil ter vindo. Você está ótimo. Estou falando sério. Bem, como sempre. Como está Luna? Marcelo: Bem. Natália: Que bom. E Charli? Marcelo: Bem, muito bem. Natália: Quantos anos Charli tem agora? Marcelo: Oito. Natália: Nossa... como o tempo passa. Oito anos. Tanta coisa em oito anos. (pausa) E Luna? Marcelo: Se te interessa, Natália, não tenho muito tempo. Natália: Como sempre, não é? Um homem importante é um homem ocupado, um homem com a cabeça sempre em outro lugar... Ou será que é a sua mulher que não quer que você me veja? Contou a ela? Marcelo: Não achei necessário. Natália: Ah... (pausa) Então é um encontro clandestino... Adoro encontros clandestinos. Têm qualquer coisa de mistério. Toca o telefone. Natália: Outra vez! Conte, pode contar. Cinco vezes. Já pensei em mudar o número. É insuportável. Marcelo: Para que me chamou? Natália: Tem de haver uma razão, não é? São tantas coisas. Na clínica, agora, a última vez, pensei muito em você, sabia? Quando estudávamos, quando fugíamos das aulas... É bom ter memórias, alguma coisa pelo menos, histórias que não vamos esquecer nunca. Lembrei muito de você. Era tão forte, será que você lembra, era extraordinário, não era? (com ternura dissonante) Já fez amor como fazia comigo? Aposto que não. À noite, na praia, a lua era como um sol grande. Soube depois que ia ficar grávida. (pausa) O que aconteceu? Marcelo: Você foi embora, Natália. Natália: Sim, sim, eu sei. Que maluca. Contei para o Patrício... Ele não acreditou. Não sei... Pensei que estava apaixonada. Era tudo tão... Tão forte... O de Boris... Uf... Eu era tão jovem... Também estava confusa, lembra? Patrício disse que eu estava confusa, que eu acreditava que desejo e realidade eram uma coisa só, você entende? Marcelo: Quem é Patrício? Natália: Meu médico. O vejo três vezes por semana. Marcelo: Quem paga? Natália: Darei um jeito. Deus ajuda. Até para você poderia ser bom ir de vez em quando. Por que nunca mais fez teatro, Marcelo? É muito bom. Marcelo: É de dinheiro que você precisa, Natália? Natália: Não, nunca precisei de dinheiro. Isso você sabe. Nunca me interessei por dinheiro. Não mudei. Preciso de outra coisa. Outra coisa, muito diferente: amor, Marcelo. A-mo-r. Estou tão confusa. (pausa) Você vai pensar que é besteira, mas eu não consigo te esquecer. (pausa) Bom, foi Patrício quem me disse. Tudo era para te esquecer. Tudo. (pausa) Mas agora é diferente. A única coisa que eu quero agora é ficar em casa, ter uma família. Nada de passeios incríveis, viagens, fotos. Quero tomar café-da-manhã, almoçar junto, ver TV. Você tinha razão. Eu estava perdida. Eu... Sabe que me chamaram do canal? Marcelo: Não, não sei. Natália: Vão me esperar. Querem que eu volte. Não é um papel principal, mas acham que eu posso fazê-lo bem. Disse a eles que, por ordem médica, não podia fazer nada muito cansativo e toparam do mesmo jeito. Inclusive pode ser que me entrevistem para a Caras. Capa.... Gostaria que me fotografassem com as crianças? Marcelo: Foi para isso que você me chamou? Natália: É só uma foto. Não é certo, mas disseram que talvez fizessem algo. E nesse caso... Eu acho que poderia ser importante, é uma parte da minha vida. Marcelo: Você sabe que não gosto que apareça com Luna e Charli. Natália: Eu entendo, mas... É só uma foto. Marcelo, por favor, me perdoe. Marcelo: Faz quatro anos que você não os vê, Natália. Ela esfrega rosto. Angustiada. Natália: É, eu sei. Mas... eu penso neles. Sempre pensei neles. Isso tudo tem sido como acordar de novo... Não perguntam por mim? Marcelo: Não mais. Natália: Meu Deus, que difícil tudo isso. Você não vai acreditar, mas eu olho para você e é como se o tempo não tivesse passado. Pense. Seria tão bom para todos. Luna, Charli, os quatro como deve ser, como deveria ter sido sempre: deixá-los no colégio, gostar uns dos outros, estar sempre por perto. Acha possível sermos uma família de novo? Marcelo: Para sair na Caras? Natália: Não, de verdade. Falo para valer. Olho para trás e vocês são a única coisa boa que vejo. Estou muito melhor. De verdade. Você vai dizer que estou maluca, mas vamos envelhecer juntos. Estou certa disso. Marcelo? Natália: Está louca, Natália? Natália: Olhe para mim. Somos jovens ainda. Bom, não tanto quanto antes, mas... Estamos bem. Pausa. Marcelo se inquieta. Natália: Não estou te pedindo que a gente fuja para a floresta e que a gente vá viver no fim do mundo. Pense bem. Não é nenhum absurdo. Toca o telefone. Natália: Esse imbecil vai me deixar louca. Pode atender, por favor? Marcelo: Não, está não é minha casa. Natália (atendendo abruptamente): Alô! Não, não me chamo Mônica, não! (desliga violentamente. Tenta se controlar). Tem certeza de que não quer uma bebida? Não? Marcelo... Marcelo: Tenho de ir, Natália. Natália: Não pode ficar comigo esta noite? Marcelo: Fiquei de buscar Luna na casa de uma amiga... Natália: Pode voltar... Marcelo (tirando a carteira): Não faz sentido continuar esta conversa, Natália. Natália: Considere, pelo menos, considere. Uma vez... Marcelo faz um cheque. Natália: Marcelo? Marcelo? Marcelo: Já vou.

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