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Trecho de <i>Infiéis</i>, de Marco Antonio de la Parra

Dramaturgo chileno visita o Brasil para ministrar oficina na Faap

Por Agencia Estado
Atualização:

No Brasil para ministrar uma oficina de dramaturgia de três dias na Faap, o chileno Marco Antonio de la Parra mostra que suas peças estão nos detalhes, ou melhor, na "teatralidade menor", como ele mesmo gosta de chamar. Na última terça-feira, durante a segunda aula de sua oficina, o autor recebeu a reportagem do Estado: ?Vocês podem entrar, mas nenhuma palavra, silêncio.? Leia abaixo um trecho de outra das peças do dramaturgo, Infiéis, o qual estreou no último fim de semana a trama O Continente Negro. Trecho da peça Infiéis, de Marco Antonio de la Parra, na tradução de Hugo Villavicenzio, publicada pela Escola Célia-Helena. Daniela: Felipe, você está outra vez gritando no banheiro. (a música pára subitamente) Felipe: Acabo de fazer a barba e saio, Daniela. Daniela: Você vai acordar as crianças... Felipe: Nem no banheiro posso ficar sossegado. Como é que vai surgir um novo talento neste país se as mulheres ficam atrapalhando? Estava experimentando um jeito diferente de fazer poesia. Era uma canção de amor, diferente. Mostrando o casal sem pieguice, sem lugares:comuns, moderna e divertida! Daniela: As crianças vão acordar se você continuar berrando. Tudo bem que você acorde cedo. Pense nelas. Constanza ficou fazendo a lição de casa e foi dormir tarde. Ela não é como você. E você não é a única pessoa desta casa. Felipe: Tudo bem, você está certa, meu amor. (pula para o ?banheiro? e continua berrando) Pomba envenenada de vida / jogaste uma bomba na minha testa / estou condenado a ver:te / de noite, os olhos limpos / Minha fronte ilumina - se com teus beijos / teu seio flameja nu como a mais cruel das bandeiras. Daniela (impaciente): Felipe, você está falando muito alto! Felipe (imitando): Felipe, você esta falando muito alto! (para o público, sempre no papel de poeta famoso) Estou falando muito alto? Sim, estou falando muito alto. Sou um irresponsável? Sim, sou um irresponsável! Vou chegar tarde no escritório? Vou chegar sumariamente atrasado no escritório. (apontando para a Daniela como a mostrá:la ao público) Esta é a mulher de um artista. (para Daniela) Quando eu ficar famoso, vai me pedir desculpas. Daniela: O café já está pronto e está na hora de você ir, meu amor. Felipe: Está bem, estou indo. (acabando de se vestir) Sabia que a mulher do Garcia Márquez toma conta da casa enquanto ele se tranca para escrever? Pois é, eu mal começo a recitar os meus versos no banheiro nessas poucas horas que sobram antes de ir para a merda do meu emprego e você me sabota. Estou ficando podre com essa sociedade de consumo. Você, o emprego e o governo querem acabar comigo. Daniela: Não se esqueça da pasta. Felipe: Estou pouco ligando para a pasta, meu amor. Escute aqui, você não gostaria de ser a mulher de um escritor famoso, ter foto na orelha do livro, ter uma legião de admiradores, viajar pela Europa toda? (ri da sua própria fantasia. Imitando tietes) Felipe! Felipe! Felipe! Daniela: Você está sonhando. Nada é tão fácil assim. Felipe: Eu não estou sonhando. É assim mesmo. Tudo é uma questão de ter objetivos e metas. Planejamento. Ter um público:alvo e um perfil adequado. Com minha experiência como publicitário... Daniela: Escrever um poema não é o mesmo que vender detergente. Felipe: Todos somos detergentes, somos produtos publicitários. Tudo é consumo. Eu vou ser um gênio, melhor, um gênio rico. Não como aqueles artistas alternativos de que você gosta tanto. Daniela: O que é que eu posso fazer se os acho autênticos? Felipe: Autênticos? Eu acho eles uns idiotas. Você poderia se juntar a mim, você escreve bem. Melhor do que ficar fazendo camas feito besta. Seríamos uma dupla fantástica. Para que você fez jornalismo? Para ficar fazendo frilas babacas e entrevistando milicos? Se pelo menos você me deixasse escrever... Se as crianças não estivessem num colégio tão caro... Se as prestações do carro não aumentassem todo dia... Que belos poemas eu ia fazer. Daniela: Você vai chegar atrasado.

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