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Luzes da cidade

Transparência opaca

Por Lúcia Guimarães
Atualização:

Transparência. Todo mundo é a favor em público, mesmo os que roubam descaradamente. Transparência se tornou uma daquelas palavras-muleta, como foi 'cidadania' no começo do milênio. Nossa semântica engessada joga tanto peso sobre um substantivo que ele se arrasta moroso por um momento da cultura, obrigado a significar um bem universal.Quem há de ser contra a transparência nas contas públicas, nas votações do Congresso, no contrato com a operadora de celular? Mas há um outro tipo de transparência que não é fruto do progresso cívico. É a que nos coloca vivendo num aquário por causa da tecnologia, da presença da mídia digital, e de hábitos na mídia social que fizeram um rombo no ozônio da privacidade.Na última semana, a ex-braço direito do magnata Rupert Murdoch na Inglaterra, Rebekah Brooks, hoje ré do julgamento pelo grampo telefônico do defunto tabloide News of the World, mal conteve o choro ao prestar depoimento no tribunal. Qualificou sua vida pessoal de um acidente de automóvel. "De Lady Macbeth a Bridget Jones", bradou sarcástica a manchete de um jornal. A ex-poderosa editora que emprestava seus cavalos ao Primeiro-Ministro David Cameron explicava o conteúdo de seus e-mails, incluídos como peças da acusação, especialmente os que se referem ao seu caso com outro réu, o ex-porta-voz de Cameron, Andy Coulson. Se as lágrimas da Macbeth/Bridget eram de crocodilo, não sei e não há expectativa de transparência que possa ser satisfeita. Meu interesse é sobre o esforço que ela fez para preencher as lacunas deixadas pelos e-mails pessoais, escritos para ser lidos num contexto de intimidade. Embora despreze Rebekah Brooks e o que ela representa na promiscuidade do jornalismo com o poder, reservo meu ceticismo em doses iguais para seus inimigos com relação aos e-mails românticos e o que exatamente eles revelam. Apliquei o teste a mim mesma. Abri alguns escritos pessoais de outra era geológica e soltei um grito mental horrorizado com a ideia de que eles poderiam, em fragmentos, ser usados contra mim. O fim de semana tinha começado promissor. Acordei cedo e fui me entregar a dois prazeres: um conto de George Saunders e um cappuccino. Mas o café estava lotado e me vi colada à mesa de dois homens, um jovem, o outro de meia idade. Tudo bem, pensei, a linguagem deliciosa do estilista Saunders vai me transportar para o Norte do Estado de Nova York e abafar as vozes. Mas os fragmentos da conversa ao lado invadiram o conto. "I did a dirty swearing" (tomei posse em cerimônia informal); "deixa que eu falo com o Kennedy"; "Fulano (autor famoso, a omissão é minha) tem um pouco de mendácia nele."A esta altura, apenas fingia que continuava a ler. Percebi, por reconhecer a voz do homem mais velho, que testemunhava a conversa de um novo subsecretário do gabinete de Barack Obama, uma figura conhecida, com um jovem que há de ser o filho de um empresário já morto, um dos inovadores mais importantes do último meio século. Há tempos, nutria antipatia pelo interlocutor mais velho. A conversa só aumentou a impressão de que o homem, cujo salário agora ajudo a pagar como contribuinte, ganhou um paraquedas de ouro para descer em Washington, já que sua encarnação profissional até 2013 estava seriamente ameaçada.Se trabalhasse para a coluna de fofocas do New York Post, com os escrúpulos conhecidos do tabloide, teria emplacado meia página de revelações pessoais. E não teria contribuído em nada para futuras biografias, no festival de name-dropping (menção de nomes importantes) que tinha acabado de ouvir. Respeito a privacidade dos interlocutores que não me convidaram para sua conversa. As migalhas de fatos deixadas na mesa do café puderam, no máximo, satisfazer meu voyeurismo.A transparência da vida no aquário não deve ser confundida com a verdade.

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