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Transgressão em três dimensões

Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

O nome Maria Martins (1894-1978) aparece automaticamente associado na história da arte ao do precursor da arte conceitual e inventor do ready-made, o francês Marcel Duchamp (1887- 1968). Justo. Ambos dividiram não só a paixão pela arte como o mesmo cobertor. Maria e Duchamp foram amantes, mas ele tirou proveito maior desse relacionamento, segundo a respeitada professora e historiadora inglesa Dawn Ades, um dos nomes convidados pelo editor Charles Cosac, fundador da Cosac Naify, para escrever sobre a escultora brasileira no requintado livro Maria, que dedicou a ela e será lançado no dia 24, no Rio, com um debate entre os dois e o fotógrafo Vicente de Melo, autor das imagens das esculturas selecionadas para a edição. Trata-se do mais completo levantamento da obra da escultora, cuja importância histórica ainda não foi devidamente reconhecida - Maria, como ela gostava de ser chamada, foi a única a participar ativamente do movimento surrealista europeu em sua segunda fase (anos 1940), mas os críticos brasileiros, de modo geral, sempre se mostraram hostis à obra da artista. As exceções ficam por conta de dois nomes de peso: Sérgio Milliet e Walter Zanini. Apresentado em duas versões - uma delas, mais luxuosa, para colecionadores, que custa o dobro da edição normal -, o livro, além de Dawn Ades, diretora do Centre for Studies of Surrealism and its Legacies, traz ainda as valiosas contribuições do acadêmico e curador Francis M. Naumann, autor de um livro de referência sobre Duchamp, do escultor brasileiro José Resende e da escritora e crítica gaúcha Veronica Stigger. O próprio editor Charles Cosac responde pela cronologia, que não se limita a relacionar datas e acontecimentos, mas a apontar os períodos relevantes de uma vida repleta de aventuras e transgressões. Mulher emancipada e adiante de sua época, a mineira Maria, nascida numa família burguesa de Campanha no final do século 19, estudou no Colégio Sion, foi alfabetizada em francês e preparada para um bom casamento. De fato, casou-se em 1915, mas a união não durou dez anos. Sua "primeira atitude invulgar para uma brasileira da época" (1925), diz Cosac, foi romper o casamento com o historiador Octávio Tarquínio de Sousa, administrador dos Correios do Rio, trocando-o pelo embaixador Carlos Martins. Acusada de adultério, perdeu a tutela da filha e o apoio da mãe, que se solidarizou com o genro.Desde o casamento com Martins, em 1925, na França (não existia o divórcio no Brasil), o casal residiu em um país diferente a cada dois anos, o que teria retardado, segundo Cosac, o início de sua carreira artística. Ela só conseguiu organizar seu ateliê em Washington nos anos 1940, realizando a primeira individual, aos 47 anos, na Corcoran Gallery, xposição com 18 esculturas em madeira nativa, gesso, terracota e bronze que o editor do livro classifica "de natureza acadêmica".De fato, eram quase todas pobres simulacros das esculturas do francês Bourdelle, como notou um crítico americano da época. De memorável ficou apenas a capa do catálogo da exposição, um belo retrato de Maria feito por Portinari. Uma escultura de Cristo de dois metros de altura, em jacarandá, foi comprada por Nelson Rockefeller por US$ 2 mil, um quinto do valor fixado originalmente. Rockefeller logo se desfez dela. Doou-a ao Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), onde está até hoje. Grande parte da produção da artista, aliás, está distribuída entre os museus americanos. No Brasil, apenas três deles têm obras de Maria Martins: a Pinacoteca do Estado, o Museu de Arte Contemporânea (MAC, com três obras) e o Museu de Arte Moderna do Rio.O fotógrafo Vicente de Melo, a pedido do editor Charles Cosac, fez um périplo pelos principais museus do mundo para fotografar as esculturas da artista. O MoMA abriu suas portas para mostrar a mais importante delas, O Impossível (L"Impossible, 1944), na foto maior que ilustra esta página. Existem outras duas versões da obra, uma no acervo do Museu de Arte Moderna do Rio (MAM-RJ) e outra no Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (Malba) - esta última uma tiragem post mortem, em gesso, feita nos anos 1990, da qual fazem parte outras cópias pertencentes a coleções particulares no Brasil.Para a historiadora Dawn Ades, trata-se de uma das inegáveis obras-primas de Maria Martins, embora ela não compartilhe da versão dos críticos que forçam uma conexão biográfica entre O Impossível e sua vida amorosa, relacionando as garras afiadas que saem de ambos os personagens da obra às da escultora, uma mulher dominadora, e de seu amante Duchamp, que a adotou como modelo de sua obra derradeira, a instalação Étant Donnés. Segundo Dawn Ades, O Impossível tem mais a cara de uma parábola antibélica - no ano anterior, visitando com o marido uma conferência de paz no México, teria "voltado sua atenção para os problemas de reconciliação e falta de entendimento no período do pós-guerra". Para a artista, porém, tratava-se antes de metaforizar a impossibilidade de comunicação interpessoal.Coincidência ou não, foi exatamente no período compreendido entre 1944 (ano em que realizou O Impossível) e 1946 que seu caso com Duchamp esquentou e ela passou a ser reconhecida não como a mulher do embaixador brasileiro, mas como artista emergente, alvo de uma reportagem na elegante Vogue. É claro que a revista estava mais interessada nas joias que ela expôs junto a esculturas de deuses míticos brasileiros (Iemanjá, entre eles) em 1944, na Valentine Gallery. O influente crítico norte-americano Clement Greenberg, que se tornaria o grande promotor dos expressionistas abstratos americanos (Jackson Pollock e companhia), detestou as esculturas de Maria. Considerava seu desenho simétrico e suas relações formais "previsíveis", concluindo que ela não passava de uma escultora de índole "barroca, e não moderna".Santería. A historiadora Dawn Ades, uma autoridade em arte dadaísta e surrealista, curadora e autora de um livro sobre Francis Bacon, diz que Greenberg exagerou em seu julgamento. "Talvez ele achasse que o bronze não era em si moderno, incomodando-se também com as peças que remetiam ao universo do candomblé, associando-as à santería cubana, o que pode ter suscitado o adjetivo barroco", arrisca a autora inglesa, colocando a escultura de Maria Martins no mesmo patamar do dadaísta francês de origem alemã Hans Arp (1886-1966), parceiro de André Breton no primeiro grupo de surrealistas, criado em 1925, em Paris. Breton, aliás, elogiou uma escultura da brasileira, Macumba (1944), hoje no Museu de Arte Moderna de São Francisco, definindo-a como "um hino ao deus do espasmo" e destacando o uso do metal como uma possível filiação aos voduístas haitianos, que fazem figuras em chapa de ferro para representar deidades. Em tempo: Maria não era religiosa. Hedonista, gostava de se vestir com roupas exóticas e passava os dias tomando champanhe, segundo Charles Cosac. Na época, diz, ainda estava em busca de uma linguagem própria e era "artisticamente insegura"."Desastrosa" é como Cosac classifica a exposição que realizou, entre maio de 1943 e abril de 1944 na Valentine Gallery de Nova York - mostra dividida com Mondrian (1872-1944), com quem também teve um caso. Ela teria doado ao MoMA, segundo a família, a histórica tela Broadway Boogie Woogie, do pintor holandês, que comprou por US$ 800, e outra do mesmo artista ao MAM/RJ. O incêndio que atingiu a instituição em 1976, destruindo parte da coleção e documentos, não permite atestar a doação.Trópicos. Naturalmente, o fato de Maria Martins ser embaixatriz ajudou muito, mas seria injusto, segundo Cosac, não reconhecer que sua carreira deu um salto com a exposição de 1946 na mesma Valentine Gallery, onde mostrou 11 esculturas e sete joias desenhadas por ela. São da mostra duas obras que o editor destaca entre os melhores trabalhos da artista, N"Oublie Pas Que Je Viens des Tropiques (Não se Esqueça que Eu Vim dos Trópicos, um bronze de 1945) e L"Impacable (O Implacável, 1945-6), da qual existem duas versões, uma maior, na Fundação Roberto Marinho, no Rio, e outra menor, no MAC-USP. "Maria não era dos trópicos, ela simplesmente viera dos trópicos, e por isso não enfrentou problemas de identidade cultural que limitou artistas emigrantes", observa Cosac, afirmando que esse período - o que vai de 1944 a 1948 - responde pelo essencial de seu trabalho." Uma obra pequena, que mal chega a meia centena de peças.Para uma artista consagrada no exterior e amiga de pessoas influentes como Getúlio Vargas, Niemeyer e Ciccillo Matarazzo (ela ajudou a organizar a 1.ª Bienal de São Paulo e participou das três primeiras edições), Maria foi pessimamente recebida pelos críticos nacionais quando voltou ao País, em 1950, e fez sua primeira exposição brasileira no MAM. Então sediado no centro de São Paulo, o museu abrigou na mostra a versão em bronze de O Impossível que hoje está no acervo do MAM do Rio. Segundo o escultor José Resende, que escreve em seu texto sobre a escala nada tímida de Maria, traçando relações entre sua obra e as de Hans Arp e do irlandês Francis Bacon (1909-1992), "é desconcertante" como o meio cultural brasileiro ignorou e ignora a obra da artista. Resende, que prestou homenagem a Maria com uma escultura, define a artista como antecipadora de soluções escultóricas adotadas por Henry Moore e Barbara Hepworth. Na obra de Maria, diz Resende, "aparece com clareza a passagem do disforme - aquilo que ainda se mostra caótico, como o barro e o lodo - para uma formulação figurativa". E, se ela se forma como uma expressão da libido, é porque o erótico se torna um veículo para o saber, conclui. Talvez se Maria Martins tivesse escolhido outro caminho, numa época dominada pela arte de raiz construtiva - depois da Bienal de 1951 - , sua história seria diferente. Sucumbindo à críticas, ela, no entanto, silenciou. Parou de esculpir e começou a escrever. Deixou três livros, dois sobre países que visitou, China e Índia, e um sobre Nietzsche. Todos fora de catálogo.

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