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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Trabalhar

A função de Jesus era maior do que uma carreira profissional; bater cartão estava fora de questão

Atualização:

Trabalhar é bom? Tenho uma intuição estranha. No Dia dos Namorados, namoramos. No Dia das Crianças, ficamos juntos delas e presenteamos. Cada festa nos leva a demonstrar a excelência da homenagem com a intensificação do objeto celebrado. No Dia do Trabalho, curiosamente, folgamos.  É muito original, querida amiga trabalhadora e estimado amigo do labor. Imagine o anúncio: hoje, em função do Dia das Mães, vocês podem se afastar das suas genitoras o dia todo. Aniversário da pessoa amada? Graças à efeméride, não é preciso ficar junto ou ligar para a festa. Todos acharíamos muito bizarro se fosse assim. Entramos no feriado do trabalho com alegria total.  A hipótese aqui levantada é: se trabalhar fosse bom, celebraríamos fazendo serões, pulando o intervalo do almoço e dobrando as metas. Assim, teríamos homenageado o Dia do... Trabalho fazendo o que nele admiramos. Alguém dirá: não é o “Dia do Trabalho”, trata-se da data do trabalhador. Isso seria o reconhecimento da negatividade do trabalho. Engrandece o homem? Dignifica? Sustenta e ampara? Continuo com desconfianças... Imagine a cena: você ganhou a Mega-Sena da virada. Sua conta foi subitamente preenchida por, digamos, 378 milhões de reais. Uma quantia que muda a vida de quase todo mundo. Liberte-se do real e fantasie. O que você faria? Muitas pessoas viajariam com a família, comprariam uma casa melhor para a mãe, dariam presentes a filhos e festas a amigos. Há tantas coisas diante do cenário novo do dinheiro a rodo. Ninguém, absolutamente ninguém, faria planos de chegar mais cedo ao escritório no dia seguinte. “Preciso estar lá logo para garantir ao patrão que nada mudou...” Não! Nunca! A sogra seria presenteada, o cunhado, agraciado, o síndico receberia um sorriso especial. O trabalho? Abandonado para sempre. 

Estátua de Maria, José e o menino Jesus exposta para venda em uma loja de artigos religiosos próxima ao Vaticano em Roma, em 15 de março de 2013 Foto: REUTERS/Chris Helgren

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Vou apimentar a discussão. Supomos que Jesus tenha ajudado seu pai na carpintaria ou sua mãe na cozinha. Supomos, porque... nem uma única linha nos Evangelhos mostra o Messias trabalhando. Sabemos que tudo que é necessário para a salvação está descrito na Bíblia. Jesus trabalhando não ocupa um versículo. Mais, chocada leitora e espantado leitor: ao chamar os apóstolos, retira-os do seu trabalho. Pedro e seu irmão André deixaram de pescar quando Cristo os convidou. Ocorreu o mesmo com Tiago e João. Mateus, filho de Alfeu, parou de cobrar impostos diante da ordem inapelável: “Segue-me!”. Querem piorar nossa visão do mundo produtivo direto? O único apóstolo que exerceu uma atividade especializada após o chamado foi... Judas Iscariotes. Foi tesoureiro do grupo sagrado e, antes de entregar o Mestre aos inimigos com um beijo e 30 moedas, demonstrou-se corrupto.  Convenhamos: a função de Jesus de Nazaré era maior do que uma carreira profissional. Pregar, curar, fazer milagres ocupa bem uma existência. Comida? Podia multiplicar pães e peixes, fazer seu próprio vinho a partir de água, participar de jantares e festas em casas de terceiros (Zaqueu, por exemplo) ou produzir peixes em uma pesca milagrosa. Com tais poderes, bater cartão estava fora de questão. O Mestre estava envolvido em uma missão enorme e transformadora, todavia, não existe um relato de um banquinho simples feito pelas mãos do filho do carpinteiro.  Saiamos do campo minado das figuras religiosas. Escrito perto da Grande Guerra, o poema de Apollinaire chamado Hôtel anuncia que, no quarto em forma de prisão, ele decide que irá apenas fumar e não trabalhar (Je ne veux pas travailler je veux fumer). O poema inspirou o grupo Pink Martini e eles produziram a música Sympathique (je ne veux pas travailler). Se você não conhece, escute, especialmente hoje. A letra traduz uma despreocupação com o trabalho (e com a saúde...) que causa uma reação positiva e um sorriso em quase todo mundo. Conheci como tema da propaganda de um carro francês, há mais de 20 anos. Revi quando a atriz Elizabeth Tan, vivendo Li, a rica chinesa da série Emily em Paris, cantou na rua com sua voz afinada.  Tudo até aqui leva a crer que sou resistente a trabalho. Pelo contrário. Fui professor que não faltava e não atrasava. Entrego meus textos com antecedência enorme. Chego cedo às palestras. Trabalho, quando necessário, aos sábados e domingos. Dei duas palestras em Sabará (MG) no dia do meu aniversário. Acordo todos os dias às 4h para ler, estudar, escrever e trabalhar. Sou um workaholic crônico e feliz. E nem sequer lanço mão de cigarros para ter o prazer do ócio com volutas de fumaça descrito na música do grupo Pink Martini. Apenas sigo e indico meus espantos no Dia do Trabalho. Destaco nossa alegria na sexta à tardinha e o alvorecer sombrio das segundas. Trabalhei muito. Farei ainda mais coisas nos próximos anos. Just in case... confesso, jogo na Mega-Sena. Amo trabalhar, mas, quem sabe, eu teria um outro tipo de esperança com 378 milhões extras... Ajuda bastante. Concorda? 

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

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