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"Todos tinham escravos no Rio do século 19"

Por Agencia Estado
Atualização:

Há um consenso, quase lugar comum na historiografia brasileira, de que a vinda da Família Real portuguesa, em 1808, mudou o País. A mudança foi sentida, principalmente, no dia-a-dia da capital, a cidade do Rio de Janeiro. Há quase trinta anos, a historiadora norte-americana Mary C. Karasch escolheu um jeito diferente para entender essa mudança, investigando o que chamou de a principal fonte de energia dessa cidade: o escravo. O trabalho dela construiu o que talvez seja o estudo mais completo sobre escravidão no mundo urbano brasileiro. Trata-se do volume A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (Cia. das Letras, 648 páginas, R$ 48,00). Karasch partiu de uma constatação: no Rio, trabalho manual era uma espécie de vergonha, "coisa de escravo", mas era também certeza de lucro, "garantia de vida". Portanto, quem queria viver melhor tratava de comprar um escravo. Eles eram "homens-máquinas". Existiam para exercer qualquer (mas qualquer mesmo) profissão. Escravo representava fonte de riqueza. Até mesmo para o próprio escravo: sem preconceito, a autora documenta como escravos que faziam trabalhos extras acumulavam dinheiro para comprar escravo. Lucrativo - Como "todos tentavam investir em pelo menos um escravo", o negócio mais lucrativo na Corte era o tráfico. No Rio de Janeiro da primeira metade do século 19, "todos os homens de negócio estavam envolvidos no tráfico", incluído o próprio d. João VI. Aliás, o livro documentou como a chegada da Corte impulsionou o tráfico. Com o declínio do ouro em Minas Gerais, a importação de escravos caíra para uma média de 10 mil por ano. Com a chegada da Família Real, todas as rotas de tráfico tomaram preferencialmente o rumo da capital. Entre 1810 e 1840, o porto do Rio recebia, em média, 20 mil escravos por ano. A partir de 1850, a população escrava declinou, no Rio. As epidemias de febre amarela, cólera e outras doenças - mais do que a proibição do tráfico imposta pela Inglaterra, mais do que a demanda por trabalho escravo nas fazendas de café do Vale do Paraíba -, dizimaram a população escrava urbana do Rio. Sem esquecer, é claro, as dramáticas condições de vida . "A maior aniquiladora de escravos era a tuberculose", escreveu Karash, documentando que as mortes dos escravos estavam ligadas às péssimas condições sócio-econômicas e não a "doenças tropicais exóticas". Em 1840, com o tráfico em pleno vigor, os escravos eram a metade da população do Rio. O declínio do tráfico, a partir de 1850, forçou grande mutação demográfica. O censo de 1870 mostrou que viviam no Rio apenas 50.092 escravos, para uma população total de 235.381 habitantes. Jovens morriam mais - Essa mutação demográfica foi cuidadosamente estudada. Com a paciência típica dos brasilianistas dos anos 70, Karrasch reconstruiu tabelas - a partir dos registros de enterros - e documentou que quem morria mais entre os escravos eram os adolescentes e os jovens adultos, se nascidos na África, e as crianças e os adolescentes com menos de 18 anos, se nascidos no Brasil. A conclusão desse capítulo é impressionante: apenas um terço dos escravos urbanos do Rio, entre 1800 e 1860, viveu mais do que 16 anos. A dieta, marcada por total falta de proteína, e a insalubridade dos "alojamentos", mais do que as duras condições de trabalho e as punições, explicam porque as doenças matavam tanto. O mercado do Valongo, local de venda dos negros recém-chegados da África, era a ante-sala do inferno. Depois de amontoados nos porões dos navios, assim que desembarcavam os escravos eram mantidos em quarentena, em ambientes fechados, no próprio mercado. O número de mortes, portanto, era ainda maior do que durante a viagem. O cemitério dos escravos também estava situado junto ao mercado. Os enterros em massa ocorriam apenas uma vez por semana, em cova rasa. Quando os surtos de doenças endêmicas aumentavam muito, há registros de que se queimava "a montanha de cadáveres semidecompostos" no próprio Valongo. Como os escravos recém-chegados estavam especialmente magros, os sobreviventes da viagem eram alimentados a força, com comidas que não conheciam. A resistência à alimentação contribuía para aumentar o número de mortes. Os que sobreviviam às condições da viagem e ao Valongo, passavam às mãos da "multidão de intermediários" do tráfico. Se o risco de doenças diminuía com a saída do Valongo, a violência e as punições aumentavam. O texto de Karasch é relato minucioso da incompetência do senhor de escravo em tratar - com cuidados mínimos - o que era sua "mercadoria". A extensa documentação consultada, de origem médica, permitiu investigação minuciosa daquilo de que "morriam os escravos", constituindo autêntico inventário médico, organizado por grupos de doenças. A violência dos castigos explica apenas parte dessas mortes. Há causas especiais: como cada escravo espelhava a condição social de seus donos, quase todos, por exemplo, eram proibidos de usar sapatos, um privilégio de quem possuía escravos e não era escravo. A proibição de usar o tamancos era suficiente para o tifo dizimar, depois dos costumeiros acidentes, os escravos que já estavam trabalhando. O texto de Karasch vai além dessa descrição dos horrores investigando o cotidiano dos escravos sobreviventes. Desde 1840 havia um sistema econômico organizado pelos escravos, que começava com as hortas de subúrbio, continuava com os intermediários nos mercados, estendia-se para a acumulação de capital - o que incluía "comprar escravos", jóias e terras - e levava o "escravo-empresário" quase até o comércio provincial, chegando, também, até a África, devido a importação de objetos rituais. A autora comprova que escravos tinham suas próprias áreas de monopólio, baseadas na agricultura de subsistência, caça, pesca, coleta e roubo, ligadas aos setores de baixo status da economia, não diretamente relacionadas com as funções burocráticas comerciais da Corte Imperial. Ou seja, com suas "empresas" os escravos não atrapalhavam os negócios maiores, apenas desenvolviam os deles. Clientelismo para todos - A mobilidade social existente entre os escravos é uma preocupação da autora. Eles tinham, inclusive, acesso ao sistema político do Império, porque "o clientelismo funcionava também para os escravos". Um vizinho poderoso poderia interferir, por exemplo, no caso de uma pendência com o dono. Os contatos com os assassinos de aluguel, ou a simples proteção contra algum tipo de violência, era "moeda de troca" importante para o clientelismo político, como descreveu Karasch. Além disso, nem todos os escravos recebiam o mesmo tratamento. A posse de "habilidades" fazia toda a diferença. Existiam, por exemplo, "escravos tecnológicos". Especialistas - A incipiente indústria têxtil do Rio , os estaleiros, as forjas de Ipanema, usavam escravos que negociavam "condições melhores" para exercer seu ofício. Diferentes viajantes descrevem "escravos naturalistas", que trabalhavam no Jardim Botânico, no lucrativo negócio de venda ilegal de sementes e frutos de plantas e árvores raras. O Museu Imperial de História Natural também possuía os seus "escravos cientistas", que caçavam espécimes raras. Havia de farmacêuticos a barqueiros experientes, todos escravos, mas conscientes de que os "extras" de seu ofício significavam renda. Inclusive, renda que permitia comprar escravos, para repassar as partes mais difíceis de seus ofícios. O livro todo descreve o absurdo cotidiano de violência do Rio na primeira metade do século 19. Faz o mesmo com as curiosidades, como a dos escravos alfabetizados em árabe, a prática do islamismo nas senzalas, as formas associativas mais inventivas, os engenhosos modos de deter os excessos nos castigos, os "padres negros". O texto transmite a tensa atmosfera produzida pelos riscos do processo de "aclimatação" do africano ao Rio, "quase sempre mortal". Nessa tensão estava a ansiosa espera da liberdade. A descrição do medo dos senhores, frente as "ondas de suicídio" é impressionante. Mesmo com toda a violência dos "capitães do mato", os quilombos da Tijuca, teimosamente, nunca desapareceram. Tudo com um detalhe especial: todos os viajantes que estiveram no Rio nesse período relatam que as palavras favoritas do escravo, na cidade, saudoso da África, eram sempre: "minha terra" e "minha nação". O livro dessa brasilinista, que há trinta anos estuda o Brasil, explica bem o porquê da escolha dessas palavras.

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