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Tinhorão vê o popular no romance brasileiro

Obra do jornalista e pesquisador José Ramos Tinhorão, indispensável em qualquer biblioteca, resgata as relações entre a música e a ficção no Brasil, corrige erros de interpretação e reaviva autores injustamente esquecidos

Por Agencia Estado
Atualização:

Com uma produção invejável, o jornalista e pesquisador José Ramos Tinhorão, mestre em História pela USP, está de novo presente nas livrarias, agora com os dois volumes de A Música Popular no Romance Brasileiro (vol. I: século 18 e 19 e vol. II: século 20, 1ª parte). Para este semestre, está previsto o lançamento do volume III, que concluirá as pesquisas do autor. A trilogia acompanha a evolução do romance nacional desde o considerado pioneiro no gênero, O Filho do Pescador (1843), de Teixeira e Sousa, e segue até à produção mais recente da ficção do final dos anos 90. São cerca de mil páginas, com o resultado de um mergulho em mais de cinco mil romances brasileiros à procura de canções que marcaram o tempo, gêneros nascentes ou já esquecidos, e intérpretes cujas figuras comparecem às páginas da literatura nacional, como Catulo de Paixão Cearense, Eduardo das Neves e Carmem Miranda, entre outros. O mais importante, porém, é que Tinhorão, ao fazer a retrospectiva, acaba por corrigir muitos erros que vêm sendo passados para as novas gerações sem qualquer contestação, especialmente em livros que se propõem a contar a história do romance brasileiro, valorizando, muitas vezes, obras medíocres e condenando ao esquecimento outras de maior mérito em razão de preconceito social ou ideológico ou mesmo de leitura desatenta ou ainda de repetição de avaliações antigas que nunca foram conferidas. Um bom exemplo é o que aparece às páginas 161 e 162 do segundo volume, em que Tinhorão surpreende o historiador e crítico Wilson Martins em erro que só mesmo ele poderia explicar. Observa Tinhorão que Martins, no volume VI de sua História da Inteligência Brasileira, ao examinar o romance A Viagem Maravilhosa (1929), de Graça Aranha, escreve que "não é à toa que o livro termina numa cena de candomblé", quando, na realidade, as últimas quatro páginas do romance descrevem o carnaval da praça Onze de Junho, no Rio de Janeiro. Não é só. Tinhorão repara ainda que à página 22 daquele mesmo volume da sua História da Inteligência Brasileira, Wilson Martins, ao acusar o lançamento, em 1881, do romance O Flor, de Galdino Fernandes Pinheiro, sem demorar-se em qualquer comentário crítico, atribui-lhe por engano o título de A Flor, quando Flor era o apelido do personagem central, Florindo, que passa grande parte da história amando duas irmãs sem decidir-se por uma delas, exatamente como iria acontecer com Flora, personagem de Machado de Assis em Esaú e Jacó (1903). Pela constatação do pesquisador, fica claro que Martins fez uma leitura superficial do livro ou que talvez nem o tenha lido. Para piorar, segundo Tinhorão, Martins, no volume III da mesma História, ainda atribui o romance Gabriela, de José Maria Velho da Silva, a José Maria Vaz Pinto Coelho da Cunha. Para não parecer que Tinhorão escreveu a trilogia com o objetivo de reparar erros do crítico Wilson Martins, as correções sobram também para historiadores mais antigos como José Veríssimo, Pedro Calmon e outros. Calmon chegou ao absurdo de se referir à modinha como "canto brasileiro ao violão", quando esse instrumento não era usado no século 18, e sim a viola. Só por esses exemplos os estudiosos da área de Letras já sabem que, daqui para frente, antes de se fiar cegamente nesses e outros historiadores literários, obrigatoriamente terão de levar em conta esta trilogia. O primeiro volume da obra, que abrange o século 19 e os primórdios do 20, inicia-se, na verdade, antes da instituição do gênero, com o Compêndio Narrativo do Peregrino da América (1728), em cujas páginas o letrado luso-brasileiro Nuno Marques Pereira registrou observações de cunho moralizante sobre aspectos da vida colonial, entre elas a "música de feitiçaria" dos escravos. Já ali se constata o que o pesquisador chama de uma "visão de estrangeiro" sobre a nossa música popular por parte dos romancistas. Para ele, isso traduz "uma visão estereotipada da realidade popular" por parte das elites. Em romances como os de Joaquim Manuel de Macedo, Tinhorão detecta o estabelecimento de um gosto burguês e uma grande capacidade de discernir os gêneros nascentes de música e dança das camadas pobres, além da popularização da modinha e a ascensão do lundu a novo gênero de salão. Com Manuel Antônio de Almeida, o romance, segundo o historiador, ganha o sabor dos costumes das classes remediadas do Rio de Janeiro. Em Memórias de um Sargento de Milícias (1852), por exemplo, descobre-se o que se entendia por "fado" ao tempo do rei. Já em Machado de Assis, considerado o maior nome do romance brasileiro, há uma ausência quase completa de referências à vida e à música das camadas mais baixas da população. No segundo volume, Tinhorão dá início ao ciclo dos romances do século 20 que acompanharam a entrada do Brasil na era industrial. É uma vasta relação de romances que, praticamente, estavam esquecidos e relegados às prateleiras das bibliotecas públicas, como História de João Crispim, de Enéas Ferraz, que trata do desenvolvimento das sociedades carnavalescas cariocas, ao lado de outros bem conhecidos como Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Ligados à temática paulista, há os romances dos anos 20 sobre a vida perdulária das elites, como Os Devassos, de Romeu Avelar, e Coronel Lousada, de Pedro Mota Lima, hoje obras raras. Esses costumes urbanos refletiam-se no universo da província, como se vê nas festas de carnaval de Flama e Argila, de Menotti del Picchia, e em Memórias de Fulgêncio Claro, de Marques da Cruz. Outro romancista resgatado por Tinhorão é o pernambucano Mário Sette, autor de Seu Candinho da Farmácia e A Filha da Dona Sinhá, que registram a influência em Pernambuco da música popular produzida no Rio de Janeiro e o estilo de vida norte-americano que chegava por meio do rádio e do cinema. A era do rádio no Rio de Janeiro está também em Marafa e A Estrela Sobe, de Marques Rebelo, enquanto Lapa, de Luís Martins, e Mangue, de Otávio Tavares, reproduzem o ambiente dos boêmios e freqüentadores dos cafés e bordéis cariocas dos anos 30 e 40. Surpreendente é o resgate que Tinhorão faz da obra do escritor baiano Lauro Palhano, praticamente desconhecido, que revela um universo raro para os leitores do Sudeste. Em Gororoba, Palhano mostra as diversões proletárias em Belém, o bumba-meu-boi ao lado do samba carioca ouvido no rádio; em Marupiara, reúne carimbós e gramofones na paisagem do rio Amazonas; e em Paracoera, um barqueiro do rio São Francisco canta sucessos do rádio em sua cantoria rio abaixo. São essas descobertas feitas por meio da expressão do romance que constituem o cerne desta trilogia, trabalho incomparável e jamais realizado em nossa literatura. Por tudo isso (e muito mais), esta obra de Tinhorão merece, desde já, lugar permanente nas estantes das bibliotecas das faculdades de Letras e de todos aqueles que se interessam por nossa cultura popular.

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