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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|'This Is Us'

A memória talvez seja a matéria-prima da série na qual não existe monotonia

Atualização:

Memórias de família são uma fonte inesgotável para a televisão e o cinema. A série This Is Us (criada por Dan Fogelman, seis temporadas, 2016-2022) foi concebida a partir dos Pearsons, um bravo casal que luta para manter sua prole tripla.  Não sei se foi intencional fazer um jogo de palavras com o título: sim, estes somos nós (Us) e estes são os estadunidenses (U.S.). Varia a pronúncia e abunda o desejo de um grupo com quem todos possam se identificar.  Um homem que não gosta do pai violento e alcoólico, possui traumas com o Vietnã e deseja sair de casa. Uma mulher cheia de sonhos com música e que topa com ele e, dali, surge um amor intenso. Um casal lutando financeiramente e que recebe a notícia de que a gravidez originará três crianças. Reviravoltas na narrativa marcam a série. Somos levados a um caminho e, quando chega o desenlace, aparece uma surpresa total. 

Mandy Moore e Milo Ventimiglia são Rebecca e Jack Pearson, casal de 'This Is Us' que luta para manter a prole Foto: NBC/Divulgação

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O mais interessante é o plano da memória e da sobreposição de tempos. Estamos acompanhando o casal protagonista se conhecendo, tendo os filhos, os rebentos já adultos e, de repente, voltamos à infância de Rebecca (a mãe). Leva um tempo para você pegar o “traquejo” de perceber que a narrativa vai e volta como no cérebro humano que quebra linearidades de antes e depois. A memória talvez seja a matéria-prima da série.  Há três filhos de Rebecca e Jack. O mais velho é o americano loiro, bonito e inseguro quanto a sua capacidade e inteligência. A segunda é uma moça que luta com o peso a vida toda, afetiva e inteligente, insegura com sua forma física. O terceiro é um menino negro que foi adotado pelo casal. É o mais brilhante, focado ao extremo, o mais correto eticamente e sempre se achando deslocado. Ele se achava muito negro para uma família branca e muito branco para a comunidade negra na qual tentará se inserir. Há três insatisfeitos lutando: um que quer ser levado a sério pelo talento, outra que deseja ser bem considerada independentemente do corpo e um terceiro que deseja que o vejam além da epiderme. A maneira como cada um batalha suas feridas narcísicas é parte da graça da série. São todas pessoas que buscam ressignificar suas sombras.  O roteiro tem traços brilhantes e está muito acima do gênero “drama familiar”. Os episódios apresentam muitos turning points (como na série Game of Thrones). A memória remete um pouco ao Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, com planos sobrepostos. Não existe monotonia para quem acompanha.  Objetos viram amuletos, talismãs carregados de conteúdo. Somos informados da história de cada item um pouco depois, criando certa tensão narrativa. Coisas (cinzas de um ente querido, colares, uma fita de vídeo, bonecos de Star Wars, tradições de Thanksgiving) simbolizam universos inconscientes e definem a ação. Como existe uma quase generalizada dificuldade de acessar seu próprio sentimento ou transmitir suas emoções a alguém, os objetos viram personagens fundamentais com poder de comunicação enorme.  A obra trata de vícios (cocaína, álcool, comida, analgésicos). Há pessoas workaholics. Existe uma cena em que a esposa de Randall (o adotado) diz que o marido é viciado em bondade e que ela deve protegê-lo disso.  Pais e mães podem ser bons ou terríveis, sempre são importantes. Não seria errado apontar um ponto de vista psicologizante em tudo. Mesmo a Guerra do Vietnã é refeita a partir de relações com o irmão ou as memórias do filho ator que retorna ao Sudeste Asiático em busca do mundo em que o pai viveu. A carreira política de Randall também passa por considerações mais pessoais do que a grande visão aristotélica do poder. Existe meio social, todavia ele só pode ser superado a partir da família ou da falta dela.  Há trechos que me fizeram recordar das considerações de Tocqueville sobre a família em um mundo democrático.  As personagens, inclusive as muito boas, são marcadas por cicatrizes. O aleatório faz a função de despertar os traumas ocultados. O mundo randômico desestrutura o esforço de normalidade de alguns. Como no famoso episódio da Odisseia sobre a cicatriz de Ulisses, a história daquela marca evoca um fio amplo de pretéritos organizados ou esquecidos.  Já que citei Homero, há uma reflexão final para pensar a série. A poesia épica implica muito tempo e alguma erudição para ser lida e entendida. Dizemos que o romance moderno é uma resposta também a uma demanda de coisas mais curtas, mais unificadas e com menos demanda de conceitos eruditos. Ler As Viagens de Gulliver (Jonathan Swift, 1726) geralmente implica menos dedicação do que a Eneida, de Virgílio. E cada vez mais há pessoas que se inclinam ao conto, mais curto e muito mais direto, produzindo obras-primas. Vou pular etapas intermediárias do gosto cultural. Vamos ao ponto: há gente maratonando séries e não conheço quem o faça com poesia épica. Serão as séries o interesse possível do século 21? Se assim for, que pelo menos seja com obras de qualidade como This Is Us. Quem sabe, depois de ver seis temporadas sobre uma família como os Pearsons, você deseje ler sobre outra, Os Maias, de Eça de Queiroz. Eis uma boa esperança. 

* Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de A Coragem da Esperança, entre outros

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