03 de julho de 2017 | 02h00
Não sabemos quando o presidente dos Estados Unidos encontrou tempo para briefings antes da reunião com seu patrono, o presidente da Rússia, entre rodadas de golfe, horas de consumo de TV a cabo e tuítes ameaçando jornalistas. O encontro de Donald com Vladimir será o primeiro entre chefes de estado dos dois países desde que a Rússia roubou os e-mails de Hillary Clinton e entregou para os vassalos daquele niilista autoritário que mora na embaixada do Equador em Londres vazarem. Será também o primeiro desde que repórteres investigativos revelaram o seguinte: não só partiu direto do Vladimir a ordem para prejudicar a campanha presidencial democrata, como os sistemas eleitorais de 21 dos 50 Estados americanos foram acessados por hackers russos. E o voto, foi hackeado? perguntarão os perplexos.
A versão oficial de agências de inteligência é, não há sinal de que votos foram alterados. Número de auditorias feitas nos Estados pelo Departamento de Segurança Doméstica, responsável nesta área, para provar a versão oficial? Zero. Dito isso, pertenço ao time defensor da tese de que foram os americanos que elegeram seu atual presidente.
Já que o homem não desgruda da TV, será que algum assessor desesperado sugeriu as quatro horas de entrevista-afago gravadas pelo cineasta Oliver Stone com seu interlocutor do G20? Se esta for a fonte de informação presidencial, como sugeri na coluna da semana passada, Vladimir e Donald vão se encontrar em harmonia. E mais: neste ano de primeiros, vamos juntar à nossa lista o fato de que o atual ocupante da Casa Branca e o cineasta fã de Hugo Chávez compartilham também alguns traços de caráter. Ambos admiram o exercício de poder arbitrário, não têm paciência para fatos e, como a autora russa Masha Gessen escreveu no New York Times, sua neutralidade moral é a licença que facilita preconceito, ignorância e permite viver num “mundo em que tudo pode significar qualquer coisa e nada é certo”.
Se as entrevistas não tivessem sido gravadas principalmente ao longo de dois anos antes da eleição de novembro, seu impacto teria sido menos reduzido pelo que testemunhamos em 2017. Stone aceita de bom grado o que seu entrevistado inventa e não demonstra interesse digno de crédito pelos que se opõem ao presidente russo nostálgico pelo czarismo.
Um cacoete frequente dos que raciocinam em preto e branco e vivem mentalmente na década de 1950, é denunciar macarthismo quando se aponta para a ofensiva do Kremlin contra a democracia ocidental. Em tal bolha, o Vladimir bonzinho e cordato que seduz o cineasta e alega ser um incompreendido seria prova de que tudo não passa de imperialismo alimentado pela CIA. Mas o autocrata do século 21 não usa uniforme verde-oliva. Ele conquista poder pelas urnas e prefere convencer o eleitor de que é apenas seu abnegado serviçal.
O mesmo político que diz, “minha especialidade é matar” num momento de candor, lançará mão de especialistas em faxina de imagem para mostrar seu lado suave. E sempre haverá um artistintelectual para fazer o serviço do falso serviçal.
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