Textos atravessam vida criativa de Kafka

A coletânea Narrativas do Espólio traz a marca do escritor desde seus primeiros acertos, transitando da fábula à paródia, e do épico ao aforismo

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Por Agencia Estado
Atualização:

As Narrativas do Espólio, como de resto toda a obra de Franz Kafka que chegou até nós, trazem a intermediação essencial de Max Brod, o amigo e testamenteiro que traiu seus últimos desejos e, em vez de destruir seus manuscritos, como Kafka desejou antes de morrer em 1924, os salvou. Também esses 31 relatos, que vão da fábula à paródia, do épico ao aforismo, foram selecionados por Brod por lhe parecerem formalmente resolvidos, em meio a um vasto espólio de textos incompletos, rascunhos e fragmentos, deixados ao lado de dois testamentos. Mais que resolvidos, são textos que trazem as marcas da mão seca de Kafka e impressionam pela aspereza e brutalidade, nada devendo ao estilo duro - hoje dito kafkiano - dos grandes romances como O Processo e O Castelo. Basta tomar como exemplo uma narrativa de oito linhas como Pequena Fábula que, sem gastar palavras inúteis e com o poder de condensação de um pesadelo, desvela a face brutal da amabilidade. Embora tenha começado a escrever seus textos realmente importantes em 1912 - segundo Carone, a fronteira entre o pré-Kafka e o Kafka realmente kafkiano está em O Veredito, desse ano - mesmo no início de 1913, um ano antes, portanto, da primeira das narrativas agora traduzidas, Kafka ainda não existia como escritor. Tinha se limitado a ler os originais de A Metamorfose, que viria a ser seu livro mais conhecido, para o amigo Brod. Andava desgostoso, pois havia proposto ao editor Kurt Wolff, sem sucesso, que os editasse, ao lado de O Foguista e de A Condenada, compondo um único volume. Kafka ainda lutava para existir - e, na verdade, pareceu viver assim, com um forte sentimento de mutilação, até o fim de seus dias. O desejo de que sua obra viesse a ser destruída pode ser interpretado, hoje, como um reconhecimento dessa luta, que ele supunha sempre fracassada. Combate - No ano de 1914, Kafka lê para Brod o primeiro capítulo de um novo romance, O Processo. Em 1916, fará uma primeira leitura pública de A Colônia Penal. No ano seguinte, particularmente fértil, escreverá nada menos que 14 contos - que compõem o miolo do livro agora traduzido para o português por Modesto Carone. Narrativas, na verdade, que ilustram não só o nascimento, mas o combate de um escritor para quem escrever não era nada fácil e se fazia, muitas vezes, a despeito dele. Apesar disso, só a literatura lhe importava, certeza manifesta na célebre frase: "Tudo o que não é literatura me aborrece." Essas Narrativas do Espólio, portanto, atravessam toda a vida criativa de Kafka, dos primeiros acertos à morte física, e, se costumam ser desprezadas quando em contraste com os livros célebres, servem como um "negativo", sucinto e frontal, de um grande talento. Em seu posfácio, Modesto Carone afirma que "elas garantiriam a Kafka, por si sós, um lugar privilegiado na literatura mundial", no que não há exagero. Mas apenas a constatação de grandeza de Franz Kafka, um escritor que não precisou dos grandes livros nem da glória em vida, para se impor.

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