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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Tetraedro

Amigos na mesma área e correndo em raias que por vezes se cruzam é coisa ainda mais rara

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Atualização:

Quatro amigos reúnem-se ao redor de uma mesa. É um encontro afetivo ou, se preferirem, podem chamar de simpósio. Os tempos são distintos e ninguém tem auxílio doméstico à noite. Não é um banquete, palavra pomposa e antiga que parece implicar criados de libré e botões dourados. 

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Um deles tem nome de rei merovíngio. É de inteligência aguda, o mais novo do quarteto. Parece misturar Montaigne e Rimbaud. O filósofo, pela vontade de estar na torre; o poeta, pela genialidade linguística e liberdade. Ambos, pela francofonia desabrida. Quem o conhece pouco toma-o por outro gaulês: Obelix. O palavrão, o talhe grande, a vitalidade agreste, a vida em busca de javalis e de ninfas. É uma força da natureza, porém pouco se dilui no universo circunstante. Existe, pensa, dialoga e mira a taça de vinho, ensimesmado no jardim secreto que lhe basta. Nunca saberão se a voz tonitruante espalha aos filhos de Prometeu as frases: “Escutem-me” ou “Afastem-se”. Talvez ele também não saiba, talvez ambas as mensagens. Seu grão-ducado é a axiologia.

O segundo é o mais velho do quarteto. A barba patriarcal e a cadência melódica da voz remetem à boa tradição monacal. As afirmações são imbricadas na busca da precisão vocabular. Sua fala é radical, no sentido de buscar raízes, de ideias, de léxicos e de desmonte de trevas do preconceito. Seu nome remete ao general do Lácio, o terceiro fundador de Roma. Claudica um pouco e pensa muito, borda ideias próprias com citações cirúrgicas. Sorriso largo e abraço acolhedor: impossível não reconhecer a origem peninsular banhada pelo amor sagrado ao incenso e ao vinho capitoso. Confia-se nele de imediato. Admira-se quase ao mesmo tempo. Tem a força pessoal de um guerreiro convicto. É o rei da etimologia. 

O terceiro é um mosaico. Tem nome de rei deposto em 1848. Nascido na Veneza brasileira, educou-se na nossa primeira capital. Sangue avoengo gerado por útero de tribo perdida nos trópicos. Sua harpa canta a melancolia do exílio na Babilônia. Acredita na insuficiência humana, na perfectibilidade tragicômica da nossa espécie, desconfia de gente que tenta ser feliz a todo custo e tem a adamantina coragem de ser contra a maré positiva e correta do mundo. É um cético místico, desconfiado da customização que as religiões sofrem hoje e sempre andando ao lado dos grandes profetas; menos Amós, claro, que ele acha de extrema esquerda. Se fosse um ser do século 19, talvez fosse Raskolnikov, mas com trama elaborada por Nelson Rodrigues. Ele impera na política. 

A inteligência dos três convidados já descritos é enorme. Todavia, cada um segue uma alameda distinta. Todos os três são cultos, amigos leais, pensadores agudos e incomodam quem aprecia modelos fixos ou clichés. 

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O quarto convidado tem nome de santo sevilhano. Sua musa é Clio, ao contrário dos outros. A etimologia é um oxímoro: homem-leão, já que a juba seria um pleonasmo, no mínimo. Compartilha a formação religiosa com o segundo, o amor à cultura francesa do primeiro e a sedução místico-cética do terceiro. Ama a música e Shakespeare. Se ganhasse um condado, um baronato sequer, optaria pela Retórica. 

Amizade entre pessoas diferentes está escassa hoje. Amigos na mesma área e correndo em raias que por vezes se cruzam é coisa ainda mais rara. Eu sou, tu és, nós somos e nenhum é o outro. Necessária uma estabilidade que faça a ave de Minerva alçar voo, voltar, observar e novamente abrir as asas ao céu. Cada um com sua vida pessoal e profissional, todos lendo uns aos outros, formações distintas, cabeças sem outro elo senão o amor ao conhecimento. 

Para os inimigos, os quatro são os cavaleiros do Apocalipse. É um elogio poderoso. Trata-se da Fome, da Morte, da Peste e da Guerra na Terra de Santa Cruz. O sucesso deles? Mostra firme do declínio nacional. Vendem muito? Sinal de que ninguém mais busca coisas densas. Qualquer um pode falar o que eles falam, dizem milhares sedentos de sucesso e que os inimigos, curiosamente, tendo a fórmula na mão, não conseguem reproduzir. 

Para os amigos, são mosqueteiros, ou três tenores e um baixo, ou quaisquer coisas imaginativas e boas. Muitos discordam da escalação do time e prefeririam trios a quartetos. É sempre complexo. Trata-se de um momento especial no Brasil que, entre seguidores e detratores, professores façam eco na crosta tupiniquim. Ginásios e salas lotadas e lançamentos concorridos: não, eles não cantam nem dançam na garrafa, ainda que não se oponham aos que o façam. Eles falam, escrevem, gravam, publicam. Essas são as armas. Fascinam e repelem, atraem, iluminam e enraivecem também. Um jogo um pouco acima do fogo-fátuo e bem abaixo da eternidade. 

Qual o futuro? Impossível prever. O tempo deles pode terminar no fim do ano ou entrar em décadas seguintes. Será curto demais para alguns e insuportavelmente longo para outros. Toda profecia é problemática. Por enquanto, segue o barco e o encontro. O que eles conversaram? O público ficaria chocado. A caixa de Pandora foi aberta a quatro mãos. A esperança ficou bêbada ao final. Um deles disse que toda esperança é falsa; outro disse que ela era um te... ; um terceiro lembrou que era uma virtude teologal e o último nada comentou porque estava anotando tudo para um texto do Estadão... Boa semana para todos. 

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Opinião por Leandro Karnal
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