Tesouro revelado de Keith Jarrett

Até agora inédito, registro de show realizado em Tóquio, em abril de 1979, sai em CD duplo

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Por JOÃO MARCOS COELHO
Atualização:

O catálogo da ECM contabiliza 92 gravações do pianista Keith Jarrett, entre CDs simples, duplos e caixas variando de 6 a 10 CDs cada uma. Manfred Eicher, produtor e capo da ECM, registra todos os shows, solo ou com outros músicos, de Jarrett desde o primeiro, Facing You, em novembro de 1971. É natural, portanto, que o acervo da gravadora de Munique tenha um tesouro de música feita em todos os cantos pelo melhor pianista de música improvisada do mundo. A afirmação pode soar atrevida, mas quem duvidar que ouça os dois lançamentos de Jarrett na ECM. Primeiro, Rio, o duplo que captou, como sempre sem nenhuma edição, o antológico show solo que ele fez em abril do ano passado (também foi registrado o show solo feito dias antes na Sala São Paulo).Dois meses depois, ainda não refeitos do impacto maravilhoso do recital solo de Rio em CD, topamos com o inacreditável duplo Sleeper, gema pinçada do baú da ECM, capturado em show em Tóquio em abril de 1979 pelo dito "quarteto europeu" do pianista, que ficou inédito até agora.Jarrett começou a tocar piano aos 3 anos, em 1948. Quatro anos depois deu seu primeiro recital clássico. Aos 17 já tocava com os Jazz Messengers do baterista Art Blakey. Depois de quatro anos com o quarteto do saxofonista Charles Lloyd, participou, entre 1969 e 71, da revolução da "fusion" no grupo do trompetista Miles Davis. Eicher foi buscá-lo assim que se desligou de Davis. Naquela década, Jarrett fazia um pós-bop vibrante e entre 1976 e 79 manteve dois quartetos simultâneos em atividade: o norte-americano, mais prestigiado pela crítica, com Dewey Redman, Charlie Haden e Paul Motian; e o europeu, considerado mais "light", com os noruegueses Jan Garbarek (saxofones) e Jon Christensen (bateria) e o contrabaixista sueco Palle Danielsson.Critérios enganosos, porque o norte-americano, preso às estruturas improvisativas do pós-bop, era mais conservador que o europeu, que escancarava portas sonoras até então estranhas no mundo do jazz. O norte-americano fez 10 gravações (2 para a ECM e 8 para a Impulse); o europeu apenas 4, todas para a ECM. Dois de estúdio (Belonging de 1974 e My Song de 78) e um ao vivo (Nude Ants, de 1980). Nove anos depois, surgiu o CD Personal Mountains, retirado da mesma turnê que agora nos dá Sleeper na íntegra. Das sete faixas que preenchem 1h45 de música da mais alta qualidade - todas criações de Jarrett -, seis já eram conhecidas em outras versões, mas as deste show são superiores. Ouve-se aqui a primeira versão de So Tender e uma leitura magistral de Chants of the Soul. O ritmo hipnótico de balada, o piano obsessivo de Jarrett, o sax melífluo e refinadíssimo de Garbarek e a cozinha escandinava irretocável são de arrepiar.Entre as conhecidas, Personal Mountains recebe aqui sua mais ambiciosa e espetacular performance. São 20 minutos que se iniciam com o piano solo suingante de Jarrett numa levada latina e aos poucos se incorporam os demais músicos. Acima de todas, porém, paira Oasis, a aventura musical mais longa e fascinante de Sleeper. Nos primeiros minutos, o clima é xamânico: Jarrett toca percussão de mão e Garbarek esmerilha na flauta doce. Após belo solo de Garbarek no sax-soprano, Jarret improvisa como nunca, dialogando com o contrabaixo de Danielsson, com sua voz se misturando às notas (como sabem os jarrettianos, ele só grunhe e cantarola quando está tomado pela música). Foi uma enorme injustiça para nossos ouvidos Sleeper ficar inédito por 33 anos.

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