Tempo e movimento nas esculturas de Soto

O artista venezuelano, de 79 anos, cujas esculturas cinéticas são conhecidas no Brasil graças a cinco Bienais, ganha sua primeira individual no País

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Por Agencia Estado
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Jesús-Rafael Soto é um sonhador. Teve a coragem de avançar em direção a domínios desconhecidos da arte e dar vazão ao desejo utópico de integrar o discurso artístico e a sociedade. Mais do que isso, soube manter ao longo de mais de cinco décadas de trabalho uma enorme curiosidade e o desejo de investigar cada vez mais fundo a relação entre tempo e movimento, que constitui a síntese de suas vibrantes construções geométricas, como o público poderá constatar na exposição que será inaugurada nesta quarta-feira na Dan Galeria. Na verdade, Soto já é um velho conhecido dos brasileiros, tendo participado de cinco Bienais de São Paulo (em 1996 sua obra foi eleita uma das preferidas do público). Mas surpreendentemente esta é a primeira vez que o artista realiza uma mostra individual no País. A idéia do marchand Flávio Cohn, que esperou vários anos para conseguir realizar este evento, era apresentar um panorama bastante diversificado da obra do artista, que já tem atiçado o interesse de colecionadores. Em 1997, o Museu de Arte Contemporânea de São Paulo já havia realizado uma retrospectiva de Soto e há chances de o Brasil ver uma segunda versão dessa exposição itinerante, também organizada pela curadoria do museu parisiense Jeu de Paume - que terá início em dezembro, na Venezuela - em breve. Sem compreender ao certo o que aconteceu recentemente com o golpe e contragolpe vivido em seu país, ele demonstra mais uma vez ter uma personalidade conciliatória e diz esperar que o presidente tenha entendido o recado e que passe a ser mais "companheiro" dos venezuelanos. Com 79 anos, Soto continua trabalhando cotidianamente para dar conta de seus vários compromissos em seus ateliês de Paris e Caracas. Seu projeto inicial era vir ao Brasil para a abertura de sua mostra, mas foi impedido por razões médicas. Em entrevista à reportagem por telefone, ele comenta sua fértil trajetória e trata do enorme lirismo e poesia contidos numa obra rigorosa e abstrata como a sua, que todos consideravam condenada ao impasse mas que não cessa de encantar a todos. Agência Estado - Você chegou a Paris em 1950. Foi um choque? Soto - Foi um choque, mas diferente do que você pode imaginar. Não encontrei em Paris o que buscava. Procurava uma grande manifestação pós-cubista e não encontrei. Tudo que encontrei foram pinturas que voltavam ao passado, paisagens de Montmartre... Coisas que havíamos aprendido na escola. Tive que ir ao estrangeiro, à Holanda, para ver o que queria. Passei a caminhar, a ir à Suíça, à Alemanha. Felizmente havia os artistas franceses - entre as pessoas que viviam na França havia gente de todas as nacionalidades - que tinham alugado um espaço no Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris, porque não havia onde expor arte abstrata, que se chamou Realité Nouvelle. Isso foi para mim elementar, essencial. Havia então o desejo de ir mais adiante, de continuar rompendo barreiras e contra a arte mais conservadora? Soto - Sim, estavam juntos todos os artistas que se tinham formado com os construtivistas russos, com a escola de Budapeste e depois os que haviam passado pela Bauhaus. E depois descobri imediatamente os suíços, Max Bill, etc. Fiz imediatamente um grupo de amigos que me ajudaram a concatenar todas as minhas idéias sobre o que havia acontecido depois do cubismo. Eu me animei e imediatamente me pus a trabalhar, até o dia de hoje, afortunadamente. E acho que encontrei meu caminho. Você e esse grande grupo são dos últimos a pensar a arte de uma maneira utópica, de transformação? Soto - Sim. É isso. São pessoas que, como Jean Tinguely, pensam que a arte é um ente que ajuda a coletividade, fazendo sua atividade como uma espécie de aprendizado que deve ser feito e que, no entanto, é muito complexo e de difícil compreensão se as pessoas não se aproximam. Além da questão da transformação, da integração social, há também uma tendência um pouco subversiva em seus trabalhos, de querer mudar um pouco a maneira de perceber não apenas a arte, mas o entorno, a arquitetura, o espaço da cidade, não? Soto - Sim, somos subversivos e isso decorre muito da vontade de ir adiante, da ambição de chegar estruturalmente mais longe. Se posso ajudar a coletividade isso me deixa feliz. Seu trabalho também tem muita relação com a ciência. Emoção e razão são igualmente importantes? Soto - Sim, mas penso que isso sempre existiu na arte, embora só agora se tenha a coragem de confessar. Todo o renascimento foi assim. Toda pintura é óptica. Se você fecha os olhos e passa a mão na Monalisa você não sente nada, nada acontece. É um problema óptico. Todas essas coisas têm relação com momentos culturais específicos, mas não têm nada que ver com a técnica. Então quando alguém muda a técnica é porque precisa fazê-lo para poder ir mais longe. E no caso dos trabalhos em que você contrapõe o rigor das retas, do geometrismo, à liberdade da linha, do desenho retorcido? É que na realidade minha função é tomar o material e convertê-lo de elemento rígido em elemento vibratório, levando a uma possível desmaterialização conceitual e óptica. Há muito pouco cálculo. Só trabalho com cálculo quando tenho que fazer coisas grandes, que envolvam arquitetura, porque não posso me equivocar. No ateliê é possível errar e recomeçar. É comum escutar que a arte óptica, cinética, não se preocupa com o lado subjetivo, emocional da arte. Não sei se concordo. Sua obra é muito comovente... Soto - Nem eu. Imagine o que penso. Acredito que a matemática é poesia pura. O fato de não ter narrativa não quer dizer que não haja poesia? Soto- Exatamente. E se você não tem um sentido poético, não consegue captar coisas muito sutis, universais, não pode chegar à arte cinética. O que são os poetas? São pessoas que estão procurando elementos que estão dispersos e tentam pegá-los. A poesia não fala obrigatoriamente do coração, até porque na realidade não é o coração que se enamora. Quem se enamora é o cérebro. Não é verdade? Outra questão que gostaria de abordar é a relação da obra com o espectador. Por que seu trabalho só passa a existir na presença de alguém? Soto - Meu interesse era ensinar as pessoas que não estão preocupadas com coisas como essas, que não se deram conta de que o espaço e o tempo são entidades maravilhosas, às quais pertencemos e que são cheias de possibilidades, infinitas, onde ninguém tem jamais a possibilidade de chegar. Meu interesse é despertar um pouco a consciência de que o espaço é uma entidade plena, elástica que não apenas nos envolve. Quis mostrar que fisicamente somos espaço/tempo. E como despertar esse interesse? Era necessário inventar coisas. Não era possível fazer com a tela, com a pintura. Estou fazendo o mesmo que o homem pré-histórico, que estava buscando como fazer o movimento e então descobriu como fazer um cavalo, um bisão; e ademais fez a melhor pintura do mundo. E é possível seguir um pouco adiante com essas experiências, ou vocês chegaram a uma espécie de muro que é difícil de ultrapassar? Soto - Você sabe que em 55, quando fiz minhas primeiras estruturas cinéticas todos os meus amigos disseram: isso não tem saída, isso pára por aí. E havia um historiador que me seguia e dizia: isso não dá mais. Lá pelos 70 ele finalmente me disse que nunca mais repetiria isso, pois eu sempre o contrariava. Nessa ocasião ele disse que não entendia, que isso não era uma descoberta, mas o resultado de uma reflexão. A pessoa utiliza a escrita que lhe convém para isso. Você senta e escreve com as mesmas vinte e tantas letras que tem o alfabeto. Colocando-as acima, abaixo, ao lado, segue-se escrevendo e fazendo obras maravilhosas, com as mesmas letras. Você segue trabalhando com os elementos de seu alfabeto todos os dias? Soto - Sigo trabalhando todos os dias, nos ateliês de Caracas e Paris. Passo normalmente dois meses, um mês e meio, em cada cidade, dependendo do volume de compromissos. Você sabe que quando alguém tem 50 anos de ofício fica um pouquinho conhecido, não é? Serviço Jesús-Rafael Soto. De segunda a sexta, das 10 às 18 horas; sábado, das 10 às 14 horas. Dan. Rua Estados Unidos, na zona sul de São Paulo. 1.638, tel. (11) 3083-4600. Até 8/6. Abertura nesta quarta-feira às 19h

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