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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Tédio, eu?

Isolamento dá muito trabalho. Estica lençol. Abre janelas e cortinas nos quartos, para bater aquele sol. Dentes escovados no capricho. Lavar pia milimetricamente. Arrumar remédios.

Atualização:

O bate-estaca se tornou meu despertador. São pontuais. E não adianta adiar. Quando começa, meu dia começa.  Com meu filho menor em casa, que madruga, ainda dá para dar umas ordens. Depois de entrar no quarto e anunciar “papai, o dia amanheceu”, e ele desde pequenininho é o primeiro a acordar, consigo enrolar dando tarefas, tipo “tome seu café, bunda espinhuda, deixei em cima da mesa”, “regue as plantas”, “alimente o peixe”, “brinque sozinho”, “fique na varanda olhando os passarinhos”. Todo mundo em casa é bunda-algo. O mais velho, “bunda branca”. Eu sou “bunda velha”. O Tio Avê, “bunda careca”. Chico, um dos primos, “bunda cabeluda”. A mãe? Fica entre nós.

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Primeiro, o modo ódio: “Quem começa um bate-estaca numa crise pandêmica dessas?!”. Depois, os detalhes. Quando o bate levanta, ele urra, como um leão sendo massacrado. Bate a estaca. Meu corpo parece levitar. Não sei se o prédio treme, se é o planeta, ou se espasmos de susto me suspendem. Volta o urro do leão à beira da morte. Volta o prego sendo enfincado implacavelmente na Terra. Para ela, é a ponta de uma agulha de acupuntura. Nem isso. Para o bairro, é o pesadelo da primavera.

Egípcios, gregos e romanos construíram monumentos magníficos. Duvido que tinham bate-estacas. Os maias e astecas, também não. A muralha da China foi construída sem bate-estacas. O Farol de Alexandria, idem. Mas qualquer construção de predinho merreca do Sumaré tem.

E quando a Prefeitura liberou obras em quadras que circundam estações de metrô, ele passou a fazer parte das nossas manhãs e tardes. Eu tinha vista para da zona sudoeste. Via a USP. A vista agora está tomada de prédios merrecas. O pôr do sol do solstício de inverno dançou. Logo logo, dança o de verão.

Já que a maldição me acordou, que me acorda desde os 14 anos, quando me mudei para São Paulo, cidade que muda zoneamentos, em todos os bairros, constroem-se, derrubam-se casas, tratores aterram, constroem-se, bate-estacas infernizam, e vistas são eliminadas, bora viver. 

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Meus filhos viajaram. Isolamento dá muito trabalho. Estica lençol. Abre janelas e cortinas nos quartos, para bater aquele sol. Dentes escovados no capricho. Lavar pia milimetricamente. Arrumar remédios. Checar a validade. Jogar fora caixas de remédios vazias, pomadas vazias, bulas perdidas, fio-dental sem fio-dental. Limpar banheira, privada. Passar desinfetante em tudo. Checar cerdas da escova.

Preparar o café da manhã, com a obrigação determinada de ler dois jornais do dia ao menos. Na pandemia do vírus, precisa-se estar bem informado, especialmente contra a pandemia de informações, de medo, de pânico, de noia. 

Limpar cafeteira, checar validade do queijo, as frutas passadas, esvaziar potes com cereal velho, colocar novos. Tirar tudo o que tem na geladeira. Limpá-la. Checar a validade de tudo. Tirar a roupa lavada da máquina, pendurar. Lavar roupa. Pensar no almoço. Descongelar o que precisa ser descongelado para o almoço. Regar as plantas. Checar carunchos, folhas velhas, matos penetras. Lembrar de como cada vaso ou planta apareceu, ganho por quem. Olhar a vizinhança, cumprimentar alguns da janela, olhar maritacas. Refletir.

Arrumar panelas, checar as tampas de cada, talheres, jogar fora tranqueiras guardadas, como rolhas antigas, arames de pães, pratos trincados, copos rachados. Limpar a parte de dentro do micro-ondas. Lavar louça, chão da cozinha, mesa. Organizar tampas em seus respectivos potes. Tarefa demorada, que requer atenção.

Máscara, luvas, elevador, descer com o lixo, torcendo para o elevador não parar, reciclar, subir, tirar luvas, lavar bem as mãos, tirar máscara, colocar sacos de lixo novos nas lixeiras. Isso merece outro café. Refletir.

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Limpar máquina de café, alimentar peixe, ligar computador. Refletir na varanda, tomando o café. Voltar ao computador. Checar e-mail 1, e-mail 2, responder, limpar checar rede social 1, 2, 3 e 4, curtir algumas fotos, compartilhar notícias, memes e fazer piadas. Checar a lição online do filho 1 e 2. Checar informações no grupo de pais do filho 1 e 2. Checar videozinhos na caixa do filho 1 e 2. Informar a mãe, que está na chácara do vovô, no interior, em que a conexão é péssima, mas andam sem máscaras, comem coisas da horta, frutas das árvores, ovos das galinhas que ciscam entre eles, correm, capinam, do que é relevante. 

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Trabalhar. Trabalhar, trabalhar, pagar contas. Call 1, com o amigo deprimido na Holanda. Call 2, com a irmã. Call 3, para combinar a Live 1. Refletir. Ginástica. 

Quando estou com os filhos, descemos. “Ah, não, pai...” Bora, bora. Crocs, máscaras, todos pro pátio. Corre pra lá, corre pra cá, pega esta bola, olha a borboleta, segue a borboleta, quem vai mais rápido. Lava a mão. Banho. Almoço. Montar os pratos. Bora pra cozinha. Esquentar de um em um. Filho 1 põe a mesa, o 2 arruma a comida. Limpar a louça.

Sem eles, ginástica indoor. Meia hora de ferros, uma hora de ioga num aparelho que me deixa em pé. Banho demorado, com todos os cremes que a pele aguenta, afinal, não tem muito o que fazer.

Tarde. Examinar estoques. Compras online. Conta a pagar. Ler material do Curso 1. Depois, fazer Curso 1. Participar de Live 1 e 2. Postar em blog, Twitter, Insta, Face. Rever os sites de notícias. Fim de tarde, ler na cama. Tirar uma soneca.

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Noite. Aplaudir os técnicos de saúde às 20h. Panelaço às 20h30. Abrir o vinho. Preparar jantar. Jantar. Fazer Curso 2, dar entrevistas, discutir projetos hibernados, escrever o novo romance. Alimentar o peixe, apagar as luzes, dente, vitaminas, ver série. Refletir. Tédio, eu? Não viu nada. Imagine com os bundas-algo pela casa.

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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