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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Técnicas para a Escassez

Fazendo atividade voluntária com pessoas em situação de rua, pensei nos momentos de escassez

Atualização:

Quem nasceu em berço de ouro e não vislumbra risco de declínio deve evitar seguir a leitura deste meu texto. Será inútil para tais pessoas, a não ser por um vago interesse antropológico. Tratarei de um mundo estranho, mas desnecessário aos bafejados pela fortuna abundante e permanente.

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Imagino que muitas leitoras e muitos leitores sejam como eu: já possuíram bem menos do que hoje conseguem obter. Quando somos estudantes ou no nosso primeiro emprego (o meu foi aos 16), temos menos posses do que quando temos 50 anos, em geral. Naqueles momentos de, digamos, CPF mais anêmico, desenvolvemos técnicas de crise ou estratégias diante da escassez. 

Meus exemplos são abundantes. Havia café da manhã na pensão onde morei ao chegar a São Paulo. Estava incluído no preço. Era formado de café com leite, pão francês à vontade e margarina. A expressão “à vontade” era um oásis de abundância, uma tentação... Comendo vários, muitos, era possível pular o almoço. Juventude pode ter dois pilares: pouco dinheiro e ausência do medo de engordar. Ainda bem que eu não tinha doença celíaca, pois eu comia farinha branca em quantidades impressionantes. Hoje, não consumo mais pão francês, não sei se é trauma ou memória. 

Vamos à outra técnica. O chuveiro elétrico simples, no inverno, tem uma delicada estratégia. Abrir um pouco mais torna a água gelada. No outro sentido, fecha o fluxo hídrico. Há um delicado e único ponto que combina água e temperatura. Quem nasceu com chuveiro a gás não domina o processo. 

Em foto tirada no Rio de Janeiro em 29 de julho de 2021, moradores de rua aproveitam comida e cobertores doados pelos integrantes da ONG doAção Foto: Lucas Landau/Reuters

Havia um dia da semana em que o cinema era mais barato. Eu sabia de uma sessão final que ficava ainda mais em conta. Minha agenda era dada não pela relevância do filme no campo da sétima arte, todavia pelo meu bolso. Viu? São técnicas de crise que os de renda alta permanente não imaginam. Vivi o entretenimento ditado pela pechincha. 

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Certa vez, começando a pós na USP, precisei de um livro ausente na biblioteca e indisponível para meu bolso. Solução? Sentar nas cadeiras de uma grande livraria na Paulista e ler o livro, lá, em prolongadas sessões. 

No futuro, lançando minhas obras naquele espaço, relembrei, várias vezes, as horas ali passadas: lendo sem quebrar a lombada.  Houve um momento no qual, em janeiro, eram apresentadas peças teatrais a valores muito populares em São Paulo. Na minha memória, os ingressos custavam um real, porém pode ser falsa lembrança. Os lugares não eram marcados e tínhamos de chegar bem antes. Lá estávamos na fila, umas 4 vezes por semana, para ver tais peças que, durante o ano, eram inacessíveis, mesmo com a carteira de estudante. Usando expressão quase arcaica, era uma “lambança”. 

Fazer trajetos a pé para economizar ônibus, tomar água na torneira do banheiro em uma balada (que já tinha consumido a renda para entrar) e, claro, comer bem quando era convidado a uma casa mais bem abastecida. De novo, estamos no campo das técnicas de escassez. Você tem alguma indicação, ó leitora e leitor? Um passeio ao litoral, dividindo a gasolina com todos, era obrigatório. Éramos acompanhados pelo refrigerante em litro, de São Paulo, para evitar preços altos no destino final.  Lembro-me de um dia em que, juntamente com meu amigo Sergio Bairon, compramos coxinhas com vitamina de mamão em um bar da Avenida Angélica. Era um raro e feliz banquete. Éramos estudantes e dávamos aulas em escolas que pagavam mal.  Entro em uma distinção mais sutil. Falei, desde o começo do texto, daqueles que nunca passaram por privações. Desenvolvi o meu caso similar a tantos: gente que, durante o período de estudante ou passando por crise, tinha de achar maneiras de comer e até de encontrar diversão em algum oásis no deserto da pouca renda.  Existe um terceiro tipo, o mais numeroso no Brasil. São as pessoas que não atravessam um deserto rumo a regiões mais úmidas e abundantes. Refiro-me aos que moram sempre em meio ao sol e à areia. Eu já viajei com pouco dinheiro e já andei a pé para economizar passagem de ônibus. Eu sabia, e isso me animava, que eu estaria melhor. “Quando eu concluir a pós...”, eu pensava, “quando estiver em escolas que pagam mais, quando eu lançar meus livros... terei meu carro”. Muita gente de classe média sabe que pode crescer, ascender, reforçar renda e expandir dividendos. A escassez era um episódio, não um horizonte. Há muitas pessoas cientes de que, com sorte, no ano que vem, estarão no mesmo ponto difícil de hoje, ainda que exista a chance de piorarem. Não é um momento ou uma fase juvenil convivendo com a formação. Trata-se da vida toda. Fazendo atividade voluntária com pessoas em situação de rua, pensei nos momentos que eu considerava de escassez, morando em uma pensão e comendo pães com margarina. Uma cama, chuveiro e pães todas as manhãs seriam a ideia de ascensão de muitos que encontrei.  Sim, há quem nunca tenha desenvolvido técnicas de escassez. Existem muitas pessoas que não ampliam o patamar da esperança além do desejo de sobreviver até o fim do dia. Como firmar a base de uma sociedade sobre um patamar sem perspectivas? O inverno sem nenhuma chance de primavera ou esperança de abrigo é a mais rigorosa e assustadora de todas as estações. 

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

Opinião por Leandro Karnal
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