Tarsila do Amaral comenta obra de Luís Martins

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Por Agencia Estado
Atualização:

Tenho em mãos, offerecido pelo autor, o primeiro exemplar do romance Lapa de Luís Martins. Li-o sem interrupção de príncipio a fim e estou convencida de que é esse o romance brasileiro mais impressionante nestes últimos tempos. Não digo que seja o mais bello, o mais bem feito, o maior romance brasileiro, mas é certamente o mais impressionante. Não me lembro, de facto, de ter lido outra obra de autor moderno entre nós, que tenha marcado tão profundamente o meu espírito. Le chemin de Buenos Aires, de Albert Londres, livro de reportagem sobre o mesmo assumpto, me deu a mesma sensação empolgante, porém menos dolorosa. Luís Martins, longe de escrever um romance para moças tímidas, dá, com a violência brutal da linguagem requerida pelo assumpto, um tom áspero ao livro, que attinge por vezes as raias do chocante e desagradável. Mas a gente sente que não podia ser de outra forma e o próprio autor quem o reconhece numa pequena nota inicial: "É logico que o tom deste livro tinha de ser brutal. Por demais. O amor, nestas paginas, não tem lyrismo nenhum, é a tragédia quotidiana, e a mulher não é nenhum thema poético, mas uma victima anniquilada e sem protesto". Por todo o romance perpassa uma piedade infinita, uma ternura dolorida envolvendo a figura da mulher decahida e explorada. Luís Martins aborda o assumpto corajosamente, numa reportagem feita sem conveniências, sem pudor, sem dissimular a chaga putrefacta que a prostituição implantou no organismo social. Lapa é, portanto, quasi um livro de reportagem. O autor previne: - "Muita gente duvidará talvez que se trate de um romance. Digam que é reportagem". E é assim que, nesse livro doloroso, a vida apparece nu´a, dissecada. Isso dá uma sensação de tristeza e de revolta. Como a vida pode ser feia, repugnante, indigna de ser vivida! E não faltará quem o feche com desgosto e mesmo com repugnância. Mas quem assim o fizer, agirá por covardia, para não olhar a vida com olhos abertos, para não sentir a realidade da vida no seu complexo: beleza, bondade, misérias e baixeza. Entretanto Lapa não é um romance frio e árido. Passa por elle todo o sopro generoso de um magnífico lyrismo. O autor pede que se reconheça nelle a sua sincera e amarga revolta, e ella é mesmo sincera, porque todo o livro é um grito e todas as paginas são marcadas pela dor. Lapa é um romance que dá a impressão de que foi escripto ao correr da penna. Numa linguagem simples, despretensiosa, natural, sem preocupação literária. Luís Martins collocou por isso mesmo o seu livro, com a marca da sua personalidade, entre a boa literatura dos nossos dias - a literatura impregnada de um sentido novo de humanidade numa volta ao realismo, sem comtudo descer às minúcias fastidiosas do romance-inventário. Esse sentido de humanidade, dominando as artes em todos os seus sectores, é a medida que evidencia claramente o cansaço pela ficção, pelas extravagancias imaginativas. Lapa não é um romance carioca: é um livro universal porque o seu eixo é a miséria sempre igual, sempre a grande miséria de todas as mulheres que se vendem; porque o seu eixo se apóia num dos mais complexos e mais graves problemas sociaes, que só a humanidade evoluída poderá resolver. A prostituição parece preoccupar Luís Martins como um assumpto permanente. Em suas chronicas, em suas poesias, há muitas vezes referencias a ella. Sente-se a sua piedade revoltada contra os exploradores da mulher, piedade tão magnificamente expressa na phrase apostolar de Mahatma Gandhi, que se acha na abertura do livro: "De todos os males pelos quaes o homem se tornou responsável, nenhum se torna mais abjeto, mais vergonhoso e mais brutal do que a sua maneira de abusar daquillo que eu considero como a melhor metade da humanidade: o sexo feminino, não o sexo fraco. Na minha opinião é elle dos dois o mais nobre, pois, mesmo hoje, incarna o sacrifício, a dor silenciosa, a humildade, a fé e a razão".

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