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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Talentos do além

Não tenho medo de mortos. Tenho medo dos vivos que veem mortos

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Atualização:

Dei um curso sobre o pintor Caravaggio há alguns anos. O local era uma sala em Higienópolis, na capital paulista. Sou apaixonado pela sua obra. A vida tumultuada, a luz e sombra, seus temas teatrais e dramáticos: tudo parece hipnotizar. Tenho a experiência antiga que, em meio a uma aula de Contrarreforma com alunos de Ensino Médio, o quadro Judite e Holofernes (Palácio Barberini, Roma) causa um impacto imediato. O mais blasé dos adolescentes parece repetir o espanto diante da tranquila violência contida na imagem com seus jorros de sangue.

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Volto ao curso. A turma era ótima. Consegui entrar em detalhes técnicos das pinturas. Comparei o mesmo tema em diversas representações, por exemplo, Judite com a cabeça do general assírio sob a lógica pictórica de Botticelli ou de Artemisia Gentileschi. Analisamos as fontes, os estilemas caravagescos e o mundo social italiano. Construí as aulas com paixão sincera. As preleções terminaram. Os alunos se despediam e iam embora. Restou, apenas, um jovem senhor na sala. Fizera boas perguntas nas semanas anteriores. Parecia afável e bem preparado. Sorrindo, veio agradecer. Trazia grossa pasta nas mãos. Pediu para mostrar. Anunciou ser pintor.  Tenho um certo receio quando alguém quer me mostrar uma poesia ou uma pintura. O que dizer a um autor? Como tratar da sensibilidade alheia? Como não ser grosseiro sem precisar mentir? As coisas piorariam um pouco mais.

O aluno segredou-me ser um tipo especial de pintor. Disse que pintava e não pintava. Esmiuçou a contradição: ele recebia o espírito de pintores e pincelava sob tal transe. Mais: era Caravaggio que vinha até ele. Meu medo, que já estava em grau alto, ficou quase incontrolável. Verifiquei se a porta da sala continuava aberta e se uma fuga seria possível. Então... ele abriu a pasta. Diante de mim inúmeras obras em telas não emolduradas e alguns esboços de desenhos. Todos, segundo meu interlocutor, de autoria do próprio Michelangelo Merisi, dito Caravaggio. Costumo ser bem controlado nas expressões faciais, fruto de anos de sala de aula e de muito contato com público. Nem sempre consigo. Acho que ele notou minha expressão do horror. A morte parecia ter fulminado o talento do gênio. As pinturas seriam, com muito otimismo, um vago esboço sobre o tenebrismo caravagesco. Não continham a força do claro-escuro, tampouco a violência dionisíaca. Ali não se notava o cruzamento entre a fé e o humano apaixonado. O que eu tinha diante dos meus olhos eram obras com pouco domínio do desenho, perspectiva equivocada, iluminação rasa e composição de simetria oposta a Caravaggio. Eu estava, genuinamente, constrangido. Invoquei um compromisso real para acelerar a análise da pasta. Aprendi uma frase num filme do grande Anthony Hopkins (Terra das Sombras, 1993) quando se prepara para ver os escritos de uma poeta: “Só você poderia ter escrito isto”. A ideia é neutra e é bem recebida pelo interlocutor. Usei-a ao final. O aluno-artista agradeceu, porém, humilde, se desculpou: “Eu não pintei, professor, foi ele”, apontando para a imagem de Caravaggio que ainda estava na parede ao fim da última aula. Nunca mais reencontrei o pintor-médium. Reflito sobre as muitas pessoas que possuem essa capacidade de criar uma ideia e segui-la de forma decidida. Encanta-me o pensamento mágico, mas apenas quando leio Lévi-Strauss sobre a ilha do Bananal ou Evans-Pritchard sobre os azandes no coração da África. A crença é fascinante, especialmente pela sua irracionalidade e pela constituição de uma lógica própria que revela um código. Porém, se o menino do filme Sexto Sentido (M. Shyamalan, 1999) sentasse ao meu lado e dissesse que vê gente morta todo o tempo, eu ficaria intranquilo. Não tenho medo de mortos. Tenho medo dos vivos que veem mortos.  Seria fácil supor que o pintor-incorporador fosse apenas um caso patológico. Nada indicava isso. Também ele não pertencia a um grupo social ou tribal que embasasse a crença. Ele não era um azande. Meses depois descobri, por acidente, que ele era um engenheiro. A função, tradicionalmente, é treinada para o pensamento imanente, prático e quantificável. Essas são virtudes que admiro nos engenheiros e até lamento certa escassez entre nós, historiadores. 

Sempre tento fazer a crítica da minha crítica. Grande parte do sistema universitário, especialmente cerimônias de defesa de tese, apresentam recursos simbólicos de uma linguagem que traduz, em gestos e falas, certa cosmogonia acadêmica, ou quem é quem na fila do pão. Usamos, no dia a dia, adereços sem utilidade prática como gravatas. Já coloquei branco no ano-novo, sabendo que um corante (ou sua ausência) sobre o algodão não muda em nada o tempo à frente. A própria crença na mediunidade não nasce entre povos dos grotões, porém em um professor de ciências na sofisticada Paris do século 19, influenciado pelos temas científicos da evolução. O cruzamento fé/magia/ciência sempre foi notável. Estamos diante do encantamento do mundo: nossas magias parecem práticas normais, as dos outros refletiriam patologias. No mil-folhas do universo contemporâneo, resta selecionar quais as feitiçarias aceitáveis socialmente. Eu e você, leitor, temos um Mundo de Oz bem estruturado em nossas convicções. Os outros? Obviamente são loucos, carentes ou malformados. Continuo com a certeza de que os grandes mestres são mais talentosos antes do falecimento. Bom domingo a todos vocês. 

Opinião por Leandro Karnal
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