Sutil e teatral, Zélia Duncan arrebata pela palavra de Tatit

CRÍTICA: 'ToTatiando' é um dos espetáculos musicais mais surpreendentes dos últimos anos

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Por Lauro Lisboa Garcia
Atualização:

Um dos espetáculos musicais mais surpreendentes dos últimos anos é ToTatiando, de Zélia Duncan, com direção de Regina Braga, que teve rápida passagem pelo Sesc Belenzinho e agora está em cartaz no Tuca até o fim do mês, antes de viajar para outras capitais.

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A palavra "espetáculo" faz todo sentido nesse caso, porque esse de Zélia é um misto de suíte musical e encenação teatral sobre o genial cancioneiro de Luiz Tatit. Zélia encarna as personagens das canções (como no ótimo bloco das mulheres - Sofia, Matilde, Odete, Vera) e o próprio Tatit, com sutileza. Surpreende ao modular a voz alguns tons abaixo do habitual, exigindo assim que se faça silêncio absoluto para conseguir ouvi-la.

Dois músicos (Webster Santos e Tércio Guimarães, alternando-se entre teclado e instrumentos de corda e sopro) desenham a delicada trama instrumental para ela poetar e bordar com as palavras (especialmente em Ah, que trata disso), de forma lúdica, dramática, irônica, metalinguística, favorecida pelo próprio formato canto-falado do estilo de Tatit.

Primando pelo essencial, este é um dos melhores trabalhos de Zélia, que se revela expressiva atriz e provoca encantamento e emoção - principalmente na cena de Dodói, com uma grande orquídea nas mãos, em homenagem a Itamar Assumpção, parceiro de Tatit na canção. O roteiro - que começa com O Meio e termina com Essa É Pra Acabar - é impecável, dura o tempo necessário. A direção de Regina Braga é sensível, precisa, não deixa nenhuma sobra, e é de uma elegância ímpar; o cenário e a iluminação são deslumbrantes.

Poderia ficar óbvio "comentar" a letra de O Meio gestualmente, mas a sutileza que Zélia e Regina imprimiram na encenação de sua entrada no palco, andando de lado até chegar no meio, só engrandece a canção e deixa o público perplexo, na maior expectativa. É de imaginar que se começou daquele jeito só poderia vir mais e mais surpresas boas.

Principalmente para grande parte do público dela que não conhece Tatit, o arrebatamento já de início é fundamental. E induz ao silêncio necessário e precioso. Como ela mesma comentou no camarim, melhor seria se o público não aplaudisse entre um esquete e outro, deixando para se manifestar só no fim.

Além de canções que contam histórias ou descrevem situações propícias à teatralização, como Banzo, Haicai, Olhando a Paisagem, Felicidade e o palhaço de Esboço, há outros pequenos textos, como o apaixonante poema de Mário de Andrade Quando Eu Morrer Quero Ficar, da Lira Paulistana (não por acaso).

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Há um show clássico da cantora Marlene, recentemente reeditado em CD, cujo título poderia se adequar a esse de Zélia: Te Pego Pela Palavra. Numa era em que a maior parte do que se canta na música brasileira serve apenas pra fazer ruído vocal, do tipo tchum e tcha, é mais do que urgente essa revalorização da inteligência.

As letras no cenário são poesia concreta, como é o cartaz do show, brincando com o ritmo e a sonoridade da palavra que move a musicalidade de Tatit. Ao separar as sílabas do sobrenome Dun-can, emendando com o título do show ToTatiando, fica o can-to e a aliteração que vem em seguida com o sentido do tato e tal. Sutil e significativo, brilha como uma subliminar homenagem dessa fluminense aos 90 anos da paulistana Semana de Arte Moderna. Bom saber que vai ser registrado em DVD. Esse sim vale a pena guardar e rever.

 

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