Sutil comemora 10 anos com "Alice"

Trabalho do autor escocês David Greig tem como tema o intervalo entre os seres, os silêncios que rondam a comunicação humana e o esforço para vencer a solidão

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Por Agencia Estado
Atualização:

A Sutil Companhia de Arte completa a sua primeira década de existência apresentando em São Paulo, além de um novo espetáculo, uma leitura dramática, uma encenação anterior que permanece no repertório do grupo e uma publicação sobre a trajetória desse período. Trata-se, portanto, de um conjunto organizadíssimo, capaz de manter peças em repertórios, equipe artística e técnica estáveis e, como se isso não fosse pouco, produzir reflexões escritas sobre suas criações. Essa disciplina na produção e na divulgação do trabalho explica, em parte, a projeção nacional do grupo originário de Curitiba. Não explica inteiramente porque é preciso considerar, além da inegável qualidade do trabalho, um núcleo de significado que se mantém centrando as soluções estéticas do grupo. É um grupo que vem trazendo para o palco, em diferentes perspectivas, o tema dos movimentos anímicos sob a superfície concreta da vida contemporânea. Na linguagem do teatro há lugar para outras coisas além da sociologia e da psicologia. A solidez da organização, o tratamento racional dos temas das peças e do domínio da tecnologia da cena parecem fazer parte da significação do trabalho. São talvez essenciais para um grupo que se ocupa da fluidez, da escassa definição e da abertura para o imponderável da matéria psíquica. Esse trabalho apresentado agora como título de Alice Ou a Última Mensagem do Cosmonauta para a Mulher Que Ele um Dia Amou, adaptação de peça do autor escocês David Greig, mantém a fidelidade a uma vertente trilhada pelo grupo em trabalhos anteriores. Sendo extensões simbólicas do desejo, o satélite, o gravador e o telefone são também traduções poéticas dos sinais enviados por um ser humano a outro. Os personagens, que tentam incansavelmente estabelecer contatos humanos através da distância geográfica e temporal, conferem um sentido emblemático às mediações. Mesmo um instrumento malogrado - não há insucesso maior do que uma nave enviada por uma civilização extinta e perdida no espaço - sugere o esforço de ultrapassagem da solidão. Dinâmica - A trama da peça, como explica diligentemente uma personagem logo no início do espetáculo, é modelada sobre a dinâmica neurológica da sinapse. Todos os personagens desejam e tentam algum tipo de restauração de contato. Sinais e mensagens destinados por vezes a morrer no espaço, a errar o destinatário ou a confundir-se com memórias e desejos do outro adquirem, no espetáculo dirigido por Felipe Hirsch, enunciação clara e firme. Esse controle formal opera como uma moldura para contrastar o comportamento errático das comunicações frustradas e a intensidade dramática da memória afetiva. Cada personagem tem um campo visual bem definido e os textos são emitidos com a clareza de quem partilha com o outro (ou com o público) um discurso lógico e estruturado. A luz organiza e distingue as cenas por tonalidade e intensidade, os movimentos são precisos e não há, sequer por momento, a idéia de lassidão ou incerteza nas imagens e ritmos. Não é a nostalgia, ao que parece, que orienta a composição do espetáculo, mas o impulso transitivo da comunicação. Mesmo as cenas mais pungentes do texto, como as dos astronautas semidementes, confinados em uma órbita incomunicável, são tratadas sem ênfase na dramaticidade. Seguindo o discurso introdutório da peça, em que um homem recorre à descrição científica para tentar compreender o mecanismo neurológico da memória, a organização do espetáculo põe em evidência a lucidez. Tudo funciona bem, ainda que não se saiba por que e para qual finalidade as coisas funcionam. Na cenografia de Daniela Thomas os nichos para a situação ambiental de cada personagem são hiper-realistas, detalhados, enfatizando o aspecto utilitário dos objetos. Mas são também câmaras isoladas, invioláveis no seu insulamento. Animam-se quando se manifesta o desejo de entrar em contato por meio de algum artefato tecnológico. Há homens que perderam de vista as mulheres amadas ou a mocinha que procura o pai, mas em nenhuma dessas caracterizações se manifesta a exasperação dramática da busca. Permanece como uma constante no ritmo do espetáculo, na organização visual e nas interpretações dos personagens uma certa contenção, como se o esforço para endereçar-se ao outro valesse por si mesmo. Os personagens se detêm sobre a procura, prolongam o desejo e o ato de evocar porque esses momentos são durações, instantes vitais arrancados ao não ser. Na perspectiva da encenação não há lugar para o desespero. E uma das coisas mais bonitas desse espetáculo é essa sobriedade ao tratar do universo psíquico. Ninguém se descabela, não há lugar para a displicência, ornamentos sedutores ou apelos sentimentalóides. Não deixa de ser intrigante o fato de que uma encenação cujo tema é o intervalo entre os seres, as sinapses interrompidas, os silêncios que rondam a comunicação humana, seja controlado com tanto rigor. Pode ser que a Sutil Companhia de Arte parta do princípio de que o nosso teatro, cheio de idéias e de ânimo esfuziante, transborda com freqüência, afogando com uma golfada o bom gosto e a transmissão das idéias. De qualquer modo não é esse o caminho do grupo porque os fragmentos que põem em cena traçam órbitas perfeitas. Alice ou A Última Mensagem do Cosmonauta para a Mulher Que Ele um Dia Amou na Antiga União Soviética. De David Greig. Adaptação e direção Felipe Hirsch. 120 min. Sexta e sábado, às 21 h; dom., às 19 h. R$ 20. Teatro Sesc Anchieta. R. Doutor Vila Nova, 245, em São Paulo, tel. (11) 3234-3000. Até 16/2.

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