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Surpresas em tom de Black

Mestres consagrados fazem rara exibição em shows memoráveis

Por Roberto Nascimento e RIO
Atualização:

O festival de pouco risco flerta com a decepção. Como é de praxe, contrata-se o artista há tempos consagrado. Garante-se a venda de ingressos. E o ávido fã do incontestável medalhão frequentemente se depara com a realidade: seu ídolo já não é mais o que foi. Melhor preservá-lo ouvindo aquele grande disco. Por arcar com riscos e custos maiores do que os do exterior, eventos do tipo são comuns no cenário nacional. E a terceira edição do festival de vertentes africanas, Back2Black, no Rio, no fim de semana, certamente caminhava em direção a este marasmo. Lauryn Hill, Missy Elliott e Gal Costa, divas de porte, cada uma com seu merecido capítulo na história do pop, garantiam o público. Hip-hop abrasileirado, de sonoridade pouco inventiva, feito por MCs populares como Emicida e Renegado, estava no programa. A cantora de neo soul, Nneka, e mesclas agradáveis de música africana, jazz e pop acústico, como Fatoumata Diawara e Hugh Masekela, complementavam o line-up. Em suma, amarrava-se uma narrativa rentável, mas pouco arriscada da música 'black' (termo em si já batido): garantia de entretenimento, não de arte. Mas, por obra do acaso ou conspiração dos orixás, o que se viu de sexta a domingo, na antiga Estação Leopoldina, centro do Rio, foi uma rara exibição de virilidade artística por mestres consagrados. Quem diria que Lauryn Hill, alvo de críticas por sua inconstância, dona de um dos talentos menos aproveitados da história da música negra, faria um show impecável, como uma versão atualizada e cortante de The Miseducation of Lauryn Hill? Ou que a nossa Gal, um ano após um disco mediano, deixaria a plateia emocionada com pérolas de seu repertório em arranjos modernizados? Ou que tantos outros, como Hugh Mesekela, ou Daúde, elevariam, em alguns bons momentos, o status do festival de evento a celebração rítmica? Tal combinação de shows é imprevisível. E por causa da plateia brasileira foi inesperado. Na edição londrina do festival, em junho, por exemplo, o veterano trompetista e cantor Hugh Masekela fez apresentação semelhante, mas não inspirou o fulgor rítmico visto em seu show, sábado. O cenário era parecido: um estabelecimento antigo (no caso, o mercado de peixes Old Billingsgate), com dois palcos e venda de comida brasileira. Mas a resposta de um público que pouco conhecia o trompetista, no Rio, foi impressionante, a ponto de Masekela proclamar que queria ser brasileiro, e seu nome era, dali em diante, "Severino". A polêmica Lauryn Hill, que deixou o público esperando por duas horas e meia, em seu último show no País, em 2010, e recebeu críticas negativas do Estado, fez um show digno do surrado adjetivo "avassalador". Como em sua última visita, a cantora estava acompanhada de backing vocals e novos arranjos para o seu repertório de sempre: os destaques de Miseducation, e os hits dos Fugees. Mas sua voz, agora curtida como a das grandes divas em fase madura, estava letal. Começou com uma versão dub de Killing Me Softly e progrediu por Everything Is Everything, Forgive Them e Fugee La. Hill exibia afinação impecável, que era complementada pelas harmonizações inspiradas do trio de backing vocals. A cantora também lembrou o Dia da Consciência Negra, e chamou ao palco Gabriel O Pensador para traduzir seu poema Black Rage (Fúria Negra), um grito contra a opressão dos negros no mundo inteiro. "Fúria negra é fundada naqueles que nos serviram autoflagelo. Mentiras, abuso... traição espiritual", enumerou. O poema lido na tradição "spoken word" seria o ponto fraco do grande show. Mas na noite de sexta, a inconstante Lauryn estava endiabrada. Poderia ler uma lista telefônica e mesmo assim hipnotizaria a plateia.Acompanhada de sua excelente banda, com Domênico Lancelotti (bateria e MPC), Pedro Baby (guitarra) e Bruno di Lullo (baixo), Gal fez um show digno, na Estação Leopoldina. Até as novas, do disco Recanto, que mistura vertentes do indie rock e as vezes parece não conseguir acomodar a grandeza da cantora, foram reproduzidas em versões mais eficazes que as do disco. Destaque para a demolidora versão de Baby, com um solo de guitarra de Pedro, no fim. A primeira noite teve um excelente show da cantora nigeriana Nneka, que faz soul music com sotaque africano. Dona de impressionante falsete, paira sobre suas canções com rara força. Quando usa seus agudos sem parcimônia, leva a plateia ao delírio.Já o ponto fraco do festival ficou por conta de Missy Elliot. A rapper passeou freneticamente por seus hits, falando muito entre as músicas, e quebrando o fluxo da apresentação. O DJ, que brincava demasiadamente com as batidas, cortando graves, médios e agudos, não ajudou.

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