Suplemento Literário: Meditação sobre o destino (1)

Tradutor de 'Tristes Trópicos', que saiu no Brasil em 1957, publicou série de ensaios sobre o livro

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Por Wilson Martins
Atualização:

A profunda originalidade do sr. C. Levi-Strauss, em Tristes Tropicos (1) manifesta-se no "ponto de vista" e no "tratamento da materia". Pela primeira vez, as populações amarelas dos "dois tropicos" - o densamente povoado da Asia e o infrapovoado das Americas - são consideradas filosoficamente, para além do seu interesse puramente, etnografico ou historico. A novidade é sobretudo sensivel no que se refere ao indio brasileiro. Até agora, os nossos silvicolas foram objeto de estudos conscienciosos e mais ou menos aridos, por parte de respeitaveis especialistas presos ao quadro de uma obervação "objetiva", isto é, no caso, imediatista e limitada; ou eram pasto da curiosidade suspeita daqueles "exploradores" a que alude o sr. Levi-Strauss, em cujas mãos a aventura sem seriedade transformou-se num "oficio que consiste não, como se poderia crer, em descobrir, ao termo de anos estudiosos, alguns fatos que permaneceram desconhecidos, mas em percorrer um numero elevado de quilometros e em reunir projeções fixas ou animadas, de preferencia coloridas, graças às quais encher-se-á uma sala, durante muitos dias, com uma multidão de auditores para quem a insipidez e as banalidades parecerão miraculosamente transnudadas em revelações pelo unico motivo de que, em lugar de compilá-las no seu gabinete, seu autor as santificou por um percurso de vinte mil quilometros. Que ouvimos nessas conferencias e que lemos nesses livros? A enumeração das caixas transportadas, as reinações do cachorrinho de bordo, e, misturados às anedotas, pedaços de desbotada informação, que se arrastam há um seculo em todos os manuais e que uma dose pouco comum de impudencia, mas em justa proporção com a ingenuidade e a ignorancia dos consumidores, não hesita em apresentar como um testemunho, que digo? como uma descoberta original". O autor de Tristes Tropicos teve ocasião de confirmar concretamente o seu desprezo absoluto por esses aventureiros, que são mais os aventureiros da ciencia do que os aventureiros da aventura: recusando, pela presença, na comissão julgadora, de alguns desses pretensos descobridores de novos mundos, o premio da "Plume d'Or", conferido ao seu livro.

 

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Já para o sr. Lévi-Strauss, o homem, primitivo ou não, interessa sobretudo pelo que o ultrapassa: assim se explica que haja substituido a descrição pela interpretação. Se a maquilagem dos Caduveo ou o sistema social dos Bororo lhe prendem a atenção - uma atenção aguda e criadora - é menos pelo que são do que pelo que revelam: "esses camponios esfarrapados, perdidos no fundo do seu pantano, proporcionavam um espetaculo bem miseravel; mas a sua propria decadencia só tornava mais sensivel a tenacidade com que tinham preservado alguns traços do passado", escreve ele, em certo momento, numa observação que se pode generalizar para todos os agrupamentos que estudou. Testemunha do fim das raças indigenas, tanto as do Brasil quanto as da Asia, pois estas ultimas mostram ao europeu o retrato assustador do seu futuro, isto é, de uma decadencia - o sr. Lévi-Strauss procura descobrir-lhes a "significação", penetrar, através dos lastimaveis bandos errantes dos Nhambiquara, por exemplo, o segredo do homem em geral, e o segredo do homem americano em particular. Não é à toa que o mundo destroçado de broncos selvagens americanos lhe inspirou uma tragedia corneliana, a "Apoteose de Augusto": é que, na historia do homem, os dois extremos se tocam em sua significação essencial, ainda que o grande enigma continue a ser o vacuo enorme que os separa.

 

Para o sr. Lévi-Strauss - e nisso ele se distingue do "explorador" - o indigena não é exotico "no espaço", mais exotico "no tempo", um tempo que, como veremos, é mais o tempo da quarta dimensão do que o intervalo cronologico que nos afasta da descoberta. Por este lado, ele se distingue, igualmente, do etnografo, em sua definição corrente. Assim, o "tom" do seu livro torna-se cada vez mais alto e mais grave (se posso reunir essas duas imagens contraditorias) das primeiras para as ultimas paginas: mais alto nas preocupações, mais graves na seriedade dos problemas que suscita. A viagem do sr. Lévi-Strauss é, ao mesmo tempo uma viagem para o passado e uma viagem para o futuro. Seu mundo é o mundo bergsoniano da duração ininterrupta e deslizante: se podemos, em boa logica, imaginar um começo e um fim, essas noções se dissolvem irrecuperavelmente nas brumas do desconhecido: mesmo o presente, se não é propriamente uma ilusão, não se mostra mais apreensivel do que o passado ou o futuro: "le tempos fuit", dizia Boileau num verso celebre, "et nous traïne avec soi: le moment on je parle est déjà loin de moit". O Tempo é o valor central de Tristes tropicos: é o valor presente em todas as paginas, em todas as linhas. E' no Tempo, e não no Espaço que se escreve a historia do homem; é o Tempo, igualmente, que a explica e que o explica. Ainda me referirei a algumas qualidades proustianas deste livro; mas, desde já, não deixarei de acentuar que, pela sua "atitude de espirito", Tristes Tropicos é, em grande parte, uma "procura do tempo perdido" em Etnografia.

 

Para isso, foi-lhe preciso alargar o campo do seu inquerito: do indio, o sr. Lévi-Strauss passa para o hindu, e, do Brasil Central, para o mundo tropical. Não se pode deixar de pensar que alguma instintiva e obscura consciencia da realidade profunda levou os antigos a associar na mesma denominação esses dois universos: as "Indias" representavam, aos seus olhos, qualquer coisa de unitario ou de simetrico, respondendo-se, a oriente e a ocidente, em duas metades; o "caminho das Indias" conduziu, também, à America, e os habitantes da America não foram chamados "americanos", mas "indios". Que misteriosas e complexas evocações ancestrais dominarão no subconsciente da humanidade para levá-la, contra toda evidencia, a essas sínteses vertiginosas? Seria facil demais explicar esses "encontros" pela ignorancia geografica: o até hoje insolúvel problema das origens do homem americano mostra desde já, no ponto a que foi levado pelos especialistas, que aquelas identificações podem ter um sentido, mais profundo do que vulgarmente se pensa. Hoje, escreve sr. Lévi-Strauss, "depois de descobertas recentes e graças, no que me concerne, aos anos consagrados ao estudo da etnografia norte-americana, compreendo melhor que o Hemisferio ocidental deve ser considerado como um todo. A organização social, as crenças religiosas dos Gê repetem as das tribos das florestas e dos campos da America do Norte; há muito tempo, de resto, que se notaram - sem deduzir as consequências - analogias entre tribos do Chaco (como os Guaicuru) e as das planicies dos Estados Unidos e do Canadá. Por cabotagem ao longo das costas do Pacífico, as civilizações do Mexico e do Peru comunicaram-se, certamente, em diversos momentos de sua historia. Tudo isso tem sido um pouco negligenciado, porque os estudos americanos foram, durante muito tempo, dominados por uma convicção: a de que a penetração do Continente era recentissima, datando de apenas 5 ou 6.000 anos antes da nossa era e inteiramente atribuida a populações asiaticas chegadas pelo estreito de Behring. Dispunha-se, pois, de somente alguns milhares de anos para explicar como esses nomades se haviam instalado de uma ponta a outra do Hemisferio ocidental, adaptando-se a climas diferentes: como tinham descoberto, depois domesticado e difundido em enormes territorios, as especies selvagens que se tornaram, em suas mãos, o tabaco, o feijão, a mandioca, a batata doce, a batatinha, o amendoim, o algodão e sobretudo o milho: como, enfim, tinham nascido e se haviam desenvolvido civilizações sucessivas, no Mexico, na America Central e nos Andes, das quais os astecas, os maias e os incas são os longiquos herdeiros. A fim de consegui-lo, era preciso reduzir cada desenvolvimento para que coubesse no intervalo de alguns seculos: a historia pré-colombiana da America tornava-se uma sucessão de imagens caleidoscopicas em que o capricho do teorico fazia a cada instante aparecer novos espetaculos. Tudo se passava como se os especialistas ultra-atlanticos procurassem impor à America indigena essa ausencia de profundeza que caracteriza a historia contemporanea do Novo Mundo.

 

Mas, como se sabe, estudos mais recentes transtornaram completamente as idéias assentes no que se refere às origens do homem americano e ao tempo de sua instalação no Continente. E' verdade que estamos, por enquanto, no terreno das falsas soluções. Neste sentido de que tais estudos apenas substituiram algumas dificuldades por outras: em todo caso, há motivos para crer que essas dificuldades são reais, repousam na rocha solida do vivido e facilitam, por isso mesmo, em uma certa medida, a solução, ao passo que as anteriores eram criações gratuitas do espirito e impediam, na mesma proporção, qualquer resposta cientifica. Pensa-se, atualmente, que é necessario recuar de alguns milenios a data de entrada do homem no continente americano: "Sabemos que ele ai conheceu, e caçou, uma fauna hoje desaparecida: preguiça terrestre, mamute, camelo, cavalo, bisão arcaico, antilope, com cujas ossadas encontram-se suas armas e instrumentos de pedra. A presença de alguns desses animais em lugares como o vale do Mexico implica condições climaticas muito diferentes das que existem atualmente e que exigiram diversos milenios para se modificar. O emprego da radioatividade para determinar a data dos restos arqueologicos deu indicações no mesmo sentido. E' preciso, pois, admitir que o homem já esteve presente na America há 20.000 anos: em certos pontos, ele cultivava o milho há mais de 3.000 anos. Na America do Norte, por toda a parte, encontram-se vestigios datando de 15 a 20.000 anos. Simultaneamente, as datas das principais jazidas arqueologicas do Continente, obtidas pela medida da radioatividade residual do carbono, se fixam de 500 a 1.500 anos mais cedo do que se supunha anteriormente. Como essas flores japonesas de papel que se abrem quando jogamos na agua, a historia pré-colombiana da America adquire de repente o volume que lhe faltava".

 

Como se vê, o "erro" dos primeiros navegadores, supondo encontrar do outro lado do Atlantico as costas posteriores da Asia, era erro apenas do ponto de vista geografico: todas as lendas de continentes submersos ou de continentes que se fragmentaram por ocasião dos grandes cataclismos, ganham, de um momento para o outro, uma especie de dimensão historica, ancoram enigmaticamente numa realidade que, para nós, não é muito menos lendaria do que elas. E' que, como ficou dito, essas novas concepções não fazem mais do que transferir as incognitas: estamos, agora, "diante de uma dificuldade inversa à encontrada pelos antigos: como encher esses períodos imensos? Compreendemos que os movimentos de população que tentei retraçar há poucos se situam à superfície e que as grandes civilizações do Mexico ou dos Andes foram precedidas por outra coisa. No Peru e em diversas regiões da America do Norte já se descobriram os vestigios dos primeiros ocupantes: tribos sem agricultura, seguidas de sociedades rurais e horticulturas, mas não conhecendo ainda nem o milho, nem a ceramica: depois, surgem agrupamentos praticando a escultura em pedra e o trabalho dos metais preciosos, num estilo mais livre e mais inspirado que tudo o que lhes sucederá. Os Incas do Peru, os Astecas do Mexico, em quem estavamos inclinados a crer que toda a historia americana vinha desabrochar e se resumir, estão tão afastados dessas fontes vivas quanto o nosso estilo Imperio o está do Egito e de Roma, de que tanto emprestou: artes totalitarias nos três casos, avidas duma enormidade obtida na rudeza a na indigencia, expressão de um Estado ocupado em afirmar o seu poderio pela concentração de seus recursos sobre outra coisa ( guerra ou administração )que o seu proprio refinamento. Mesmo os monumentos dos maias aparecem como uma brilhante decadencia de uma arte que atingira o seu apogeu um milenio antes deles".

 

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De onde vinham os fundadores? pergunta o sr. Lévi-Strauss, para responder: "Depois das certezas de outrora, somos obrigados a confessar que nada sabemos". Num livro conhecido (2), o sr. Paul Rivet já havia discutido demoradamente o assunto, para concluir de forma taxativa: "O homem americano não é autoctone. Vindo do antigo continente não surge no Novo Mundo antes do fim Quaternario, depois do retrocesso das grandes glaciações, e só pôde chegar a ele utilizando vias de acesso iguais às existentes hoje, posto que a America possuia, desde essa epoca remota, os seus contornos atuais". O autor de Tristes Tropicos revela, por sua vez, que não apenas se encontram similaridades e vestigios asiaticos nas Americas, mas, ainda, que a contraprova asiatica parece conclusiva quanto aos contactos possiveis das duas regiões: "Por esculturas que datam do primeiro milenio antes da nossa era, sabemos que os antigos habitantes do Mexico apresentavam tipos fisicos muito afastados dos dos indios atuais: gordos orientais de rosto glabro, fracamente modelados e personagens barbudos de traços aquilinos que evocam os perfis da Renascença. Trabalhando com materiais de uma outra ordem, os geneticistas afirmam que 40 especies vegetais, pelo menos colhidas em estado selvagem ou domesticadas pela America pré-colombiana, têm a mesma composição cromosomica que as especies correspondentes da Asia, ou uma composição derivada destas ultimas. Deve-se concluir que o milho, que figura nessa lista, veio da Asia do sudeste? Mas, como isso seria possivel, se os americanos já o cultivaram há 40.000 anos, numa epoca em que a arte da navegação era certamente rudimentar?"

 

E' preciso, pois, admitir, ao menos como hipotese de trabalho, que os contactos entre a Europa e a America, por um lado, e, por outro lado, entre a America e as ilhas do Pacifico, foram, nos tempos pré-historicos, não só possiveis, como frequentes. Sem querer inverter, como Ameghino, os dados do problema, e fazer da America o "berço da humanidade", pode-se pensar que esses contactos não se realizaram em sentido unico, mas, como é natural, nas duas direções. Enquanto o Ocidente vivia fechado sobre si mesmo, escreve o sr. Lévi-Strauss, "parece que todas as populações setentrionais, desde a Escandinavia até o Labrador, passando pela Siberia e o Canadá, mantinha os mais estreitos contactos. Se os Celtas tomaram alguns dos seus mitos a essa civilização sub-artica de que quase nada conhecemos, compreender-se-ia como ocorre que o ciclo do Graal apresente com os mitos dos indios das florestas da America do Norte um parentesco maior do que com qualquer outro sistema mitologico. E não é provavelmente por um acaso que os lapões ainda constroem tendas conicas identicas às destes ultimos". Além disso, documentos arqueologicos semelhantes já foram encontrados na Asia do sudeste e na Escandinavia. Sem que nada se possa concluir, por enquanto, sem imprudencia, não se pode excluir, tampouco, a hipotese de que o homem caminhou da unidade para a diversidade e que a idéia confusa desses milenios para sempre transpostos tenha influido para a identificação das "duas Indias", que subsiste até hoje, apesar de todas as suas diferenças e de todos os seus contrastes.

 

1)Tradução de Wilson Martins, revista pelo autor - Editora Anhembi Limitada - São Paulo, 1937.

2)Cf. As Origens do Homem Americano - Tradução de Paulo Duarte - Instituto Progresso Editorial S. A. - São Paulo, 1946.

(Endereço do crítico: Rua Ubaldino do Amaral n. 710 - Curitiba).

 

 

Inspiração Comum

Claude Lévi-Strauss nasceu em Bruxelas, a 28 de novembro de 1908, e morreu em Paris, no dia 30 de outubro de 2009. Sua passagem pelo Brasil, onde morou entre 1935 e 1939, foi decisiva para seu trabalho, conforme assinala neste estudo o crítico e ensaísta paulista Wilson Martins (1921-2010). Responsável pela seção "Rodapé" do SL, Martins chegou a dar aula nos EUA. Mas sua inspiração intelectual estava aqui; não estranha que tenha traduzido Lévi-Strauss, um estrangeiro interessado no País, e haja escrito a História da Inteligência Brasileira.

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