'Suplemento Literário': A poesia de Gregório de Matos

Produção do autor baiano, redescoberta no século 19, inspirou análise centrada em sua faceta lírica

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Por Naief Sáfady
Atualização:

O problema Gregorio de Matos apresenta, ainda hoje algumas insolvencias de cunho historico e filologico. Pequena parte delas tentei resolver num trabalho, que aguarda publicação. E, independente disso, tenho a impressão que é possivel emitir, a respeito do valor intrinseco de sua poesia, um juizo mais proximo da realidade.

 

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Explico: ou pelo fato de sua obra permanecer tipograficamente inedita (pois correu em apógrafos, grande maioria dos quais do seculo XVIII), ou por modificação do gosto do publico, Gregorio de Matos caiu numa especie de ostracismo, até os primordios do seculo XIX, quando principia a voltar à tona, como decorrencia do esforço romantico de encontrar, no passado, a esteira de uma literatura marcada de brasilidade, implicita ou explicitamente antilusitana, fato que, de uma forma ou de outra, acabou por conduzir à valorização do Poeta como satirico. E é mais ou menos sempre encarada desse angulo que sua obra atravessa tanto as antologias literarias de Varnhagen, Januario da Cunha Barbosa, Melo Morais Filho, até a edição Vale Cabral das Sátiras (1881), bem como os repositorios bibliograficos luso-brasileiros da epoca (Costa e Silva, Inocencio, Macedo) - angulo que também se reflete nos estudos criticos do Realismo (os de Araripe Junior, Silvio Romero e José Verissimo). Depois de 1923, quando o incansavel Afranio Peixoto editou a volumosa produção do Poeta (1923-1933), houve uma natural triagem critica, que chegou a duas posições dominantes: a daqueles que viam no Poeta ainda o merito maior do satirico, e a de outros, que o encaravam com algumas reservas, acoimando seus poemas de plagios de Quevedo e Camões, especialmente, de resto (e isso poucas vezes se levou em conta) decorrente de uma concepção mimetica de arte, dominante em mais de três seculos de literatura classica.

 

Se as linhas mestras das Composições Metricas de Gregorio de Matos são as do lirismo e da poesia satirica, e se, de maneira geral, a tendencia tem sido de valorizar a ultima, de outra parte é preciso considerar que o interesse desse tipo de composição dimana do que ele representa de retrato da realidade brasileira (que termina por ser não só brasileira): a ascensão social do empreiteiro português (o brichote), que vinha ao Brasil fazer fortunas; o retrato da Bahia e de Pernambuco; a realidade lisboeta e coimbrã; o sebastianismo... Mas, se se ponderar que, como criação poetica, as sátiras são, em Gregorio de Matos, formas inferiores de poesia, pela repetição constante dos mesmos motivos e das mesmas "agudezas", pelo tom critico monodico, pela incidencia em uma imagetica quase sempre a mesma, que não prima nem por peculiar, nem por original, o que se conclui é muito menos pela existencia de criação poetica, do que pelo iniludivel talento de motejador (no sentido proprio) e de repentista facil, com pouco significado no plano da poesia, ao menos naquele plano em que a sátira alcança ser poesia.

 

Isto é, se se circunscrever o interesse das composições satiricas de Gregorio de Matos aos parcos quadros do que ela representa da realidade brasileira da epoca, então a posição muda: elas têm, obviamente, interesse historico-cultural, mas um interesse não-poetico. Agora, se se procurar nelas o significado que a sátira pode alcançar, como poesia, ver-se-á que o grosso das composições reduz-se a um minimo que possa ter alguma importancia. E, está claro, a importancia não será nem a do pitoresco, nem a do anedotico circunstancial.

 

Tentando uma síntese acerca do conjunto (lirico-satirico) da poesia de Gregorio de Matos, parece-me licito afirmar que ela, como expressão de experiencia humana rica e madura, reflete o drama interior de um ser que buscou a manutenção de uma forma de integridade moral, projetada na luta constante pela coerencia com determinadas convicções, tentando vencer o torvelinho das atrações faceis que se opõem (em seu intimo) a uma concepção ideal da vida, aceitando nos erros alheios seus proprios defeitos e combatendo-os - em si, pela decantação interior, nos outros, pelo ataque violento, sem poupanças, em ambos os casos, de qualquer natureza.

 

Em seu conjunto, a poesia de Gregorio de Matos é a luta pela afirmação de uma verdade: a verdade do espirito, o que explica aquele sentido escatologico e apocaliptico de fim-de-mundo, mundo a que cumpre gozar e repudiar simultaneamente. Daí passar ela, com facilidade, da verdade afirmada para a contra-verdade, o que explica constituir a floração satirica a mor parte de suas produções, trazendo, em sua crueza, a intenção moralizante e, mais do que isso, o testemunho de um homem que discorda do mundo que o cerca, embora esteja engolfado nele.

 

A luta pela inteireza do ser moral faz compreender porque as sátiras não são grande poesia, enquanto as composições religiosas e morais, por aderencia) alcançam sê-lo, muitas vezes, na medida em que refletem a pureza das maiores e mais coerentes convicções do Poeta. Explica, também, porque a grande maioria das composições lirico-amorosas são poesia de vilania, e a minoria, de cortesania. Na primeira, fica retratada a dispersão do Poeta pelo mundo das tentações e fraquezas em que se atira; na segunda, a tentativa de redenção, pela formulação de um amor (e de u'a mulher) compromissada e obediente a uma visão madura da existencia, onde o sentimento e todas suas componentes entram como forma de aperfeiçoamento do espirito.

 

Essa luta, o choque com a materialidade do mundo, é constante, da mesma forma que o é a colocação da linha divisoria entre as coisas mundanas e as do espirito. As primeiras agindo com força irresistivel sobre o Poeta, razão por que a maioria de seus poemas são - digamos assim - de assunto mundano. Em contraposição, quando o ser atinge sua forma de inteireza moral, pelo esforço de aperfeiçoamento do espirito, pelo ato claro e a descoberto da confissão, a poesia de Gregorio de Matos atinge, também, sua formulação mais autentica.

 

Dentro desse raciocinio, sou levado a crer que o Poeta é realmente grande em alguns instantes de sua poesia de confissão religiosa, com seu mundo riquissimo de verdades e experiencias, a surgirem de forma integral, desprovidos das "facilidades" e "agudezas" do repentista. A poesia religiosa de Gregorio de Matos é, de maneira geral, trabalhada, meditada, é fruto de reflexão, em que o sentido criador e artístico que a domina casa-se com a expressão de sentimento interior realizado e inteiro, com o desnudamento das pretensões e vaidades humanas e com o despojar-se de si proprio, tudo isso encimado pela busca agonica da salvação.

 

No estabelecimento de um juizo de valor global, a respeito do Poeta, o que se pode dizer é que Gregorio de Matos produziu uma obra alentada, quase toda, contudo, não-poetica. Obra quase toda circunstancial, inconsistente, desprovida de uniformidade - de uniformidade poetica, bem entendido. Como satirico, é pobre: se se levar em conta que a satira pode atingir determinado nivel poetico, e não a circunstancia de que ela sirva de documento ou retrato de determinado espaço, em determinada epoca. Como lirico é que Gregorio de Matos atinge o plano maior de sua integridade artistica. E, aí, especialmente, como o poeta que pensa, que reflexiona, que consegue um alto nivel de linguagem poetica, é que atinge o maximo de sua criação incomparavelmente distante de tudo que a poesia barroca luso-brasileira conseguiu produzir nesse setor.

 

Vale esclarecer que não é o carater, digamos assim, objetivo do lirismo religioso (e, por extensão, moral) de Gregorio de Matos que entra, nesse juizo, como criterio. Está claro que a verificação desse carater objetivo, o que vale dizer a verificação de um contra-reformismo não-jesuitico, tem importancia, e a pesquisa nesse campo pode ir além, até alcançar aproximações com um ideario joaquinista (i. é, "baseado" nas idéias do Abade Joaquim de Fiore, decantadas pelo mistico franciscano Heinrich Herp, idéias que Eugenio Asensio analisou na "Introdução" que escreveu ao Desengano de Perdidos, de D. Gaspar de Leão, publicado pela Universidade de Coimbra, 1958) - dizia, joaquinista e franciscano. Parece-me que este carater objetivo fica num segundo plano, diante do outro aspecto, o subjetivo: o ato de confissão, gerando a penitencia poetica. Nota-se que Gregorio de Matos não exercita em sua poesia de conteudo religioso nenhuma intenção de proselitismo - e, o que é mais relevante ainda, ela não chega a ser o que se poderia rotular como "luta pela fé". Muito pelo contrario, o aspecto objetivo mostra, algumas vezes, um sentido utilitarista, como se pode ler nas decimas que principiam: "Quem da religiosa vida".

 

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Para a fixação desse juizo - finalmente - é necessario que se diga que não tem validade alguma para mim o criterio de que a poesia religiosa de Gregorio de Matos seja consequencia de uma vida voltada toda ela às paixões, porque esse criterio é hibrido, pois, partindo dele, estar-se-ia a transferir a biografia do Poeta para dentro de sua poesia, o que sempre redunda em confusões de toda ordem.

 

Recolocar o Poeta Gregorio de Matos em seu quadro de valor especifico - o de um poeta religioso de interesse - e reduzir o restante de sua obra àquilo que realmente ela é, não constitui simplesmente uma tomada de posição critica; é, também, questão de justiça literaria com um autor que ficou inedito, e que, portanto, não chegou a filtrar suas composições através do crivo da autocritica.

 

Antologia: O esforço para colocar em circulação a obra de Gregório de Matos e Guerra (1633?-1696), mencionado neste ensaio de Naief Sáfady (1931-1990) - que escrevia no SL sobretudo a respeito de literatura brasileira e portuguesa - não foi suficiente ainda para trazer a público uma edição crítica de seu trabalho. A lacuna é assinalada por José Miguel Wisnik em nota à reedição da antologia que organizou com versos do autor barroco baiano (Poemas Escolhidos, Companhia das Letras).

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