SP na lente de Cássio Vasconcellos

Em Noturnos, série de fotos em polaroid reunidas na forma de exposição e livro, surge uma paisagem urbana estranha, ao mesmo tempo melancólica e lírica, soturna e fantasiosa

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Por Agencia Estado
Atualização:

Já se tornou uma espécie de tradição entre fotógrafos paulistanos o hábito de retratar a sua cidade, nadando contra a corrente e buscando em sua feiúra o máximo de beleza e poesia que se pode encontrar, como se se sentissem tentados a tirar leite de pedra. Em Noturnos, série de fotos em polaroid reunidas na forma de exposição e livro, Cássio Vasconcellos entra para esse vasto time e nos apresenta uma paisagem urbana estranha, ao mesmo tempo melancólica e lírica, soturna e fantasiosa. Dificilmente reconhecemos nas aproximadamente 90 imagens que serão apresentadas ao público a partir desta noite na Galeria Vermelho, a São Paulo com a qual nos confrontamos todos os dias. Nelas não há vestígios de vida humana; o cinza foi substituído por cores fortes, intensas; e, sobretudo, há o predomínio de um grande silêncio, que aumenta ainda mais a densidade dramática do trabalho, que adquire um caráter quase tátil. Como numa espécie de jogo da memória, nos vemos tentando encontrar nessas paisagens desamparadas algumas referências que nos sirvam de ponto de apoio. Aqui e lá realmente reconhecemos a arquitetura de Niemeyer, os arranha-céus que se desenham na outra margem do rio (Pinheiros). Mas isso não importa realmente. Propositalmente, ele não ilustra as obras com coordenadas precisas (em caso de curiosidade é possível situar-se nos mapas no final do livro). Não é necessário saber, por exemplo, que aquela estrutura de um vermelho intenso, que corre sobre nossas cabeças como um trilho abandonado, são as carcaças do fura-fila - projeto símbolo do patético governo de Pitta - para que ela nos provoque imediamente uma certa melancolia, um certo sentimento de pesar. Mostrando uma preferência por cenas de forte teor compositivo (que faz lembrar em alguns momentos os registros feitos por Thomas Farkas na década de 50, mas sem nenhum resquício do otimismo desenvolvimentista de então) e um cuidado cromático que mais parece próprio a um pintor, Vasconcellos em nenhum momento cai na tentação de ordenar a cidade, de torná-la melhor ou mais compreensível. Como ele próprio indica no texto introdutório de seu livro, a cidade se tornou para ele como uma espécie de esfinge a ser decifrada, mas que nunca será compreendida em sua totalidade. "São Paulo é assim, imensurável. Uma metrópole que nunca pára. Mesmo que ela estagnasse, por um minuto que fosse, sua imensidão não me deixaria sentir o todo." Metrópole - "Não é mais possível ver no mundo contemporâneo. O que está em jogo aqui são os limites da figuração, a incapacidade da mente humana em representar as enormes forças da metrópole", resume Nelson Brissac em seu ensaio, reiterando o caminho indicado pelo autor. Essa brincadeira entre a realidade e a ficção, o todo e o fragmento, é reforçado pela técnica usada por Vasconcellos. Ele faz questão de usar uma máquina instantânea, que não permite grandes interferências, mas tem uma peculiaridade de textura e cor que atrai uma legião de admiradores entre fotógrafos e artistas. A polaroid SX70, que já saiu de linha, ganhou até um site no Brasil (www.sx70.com.br), que reúne uma série de obras feitas com ela - até mesmo um ensaio em que Vasconcellos retrata sua mulher, Maria. O fato de ela não aceitar variações de filmes, lentes ou revelações especiais, não quer dizer que as fotos não tenham uma composição sofisticada, derivada do profundo conhecimento técnico de Vasconcellos, que já trabalhou como repórter fotográfico e hoje se divide entre a fotografia publicitária e as criações pessoais como essa série, iniciada em 1988, retomada uma década depois e que consumiu, no total, cerca de cinco anos de trabalho. Só o fato de fotografar à noite já distorce totalmente as cores, pois o filme é balanceado para a luz do dia e, nesses casos, pende para os tons de azul e verde. Ele também lança mão de luz artificial, iluminando parte das cenas que fotografa com os canhões de luz que transporta em suas peregrinações, e expõe o filme por longos períodos (de até um minuto), obtendo efeitos bastante interessantes. Inevitavelmente, uma obra como essa suscita uma certa curiosidade sobre o processo de trabalho, sobre os bastidores da criação. Imagina-se ao ver essas imagens que elas foram feitas por um solitário romântico, por um fotógrafo flanando solitariamente pela cidade, em busca de inspiração. A realidade não o permite. Em alguns casos, quando trabalhou no centro da cidade, foi necessário levar não um, mas dois seguranças. Serviço - Cássio Vasconcellos. De terça a sexta, das 10 às 19 horas; sábado, das 10 às 17 horas. Galeria Vermelho. Rua Minas Gerais, 350, São Paulo, tel. 3257-2033. Até 19/10. Abertura terça-feira, às 20 horas, com lançamento do livro Noturnos - São Paulo. Editora Bookmark, 248 páginas, R$ 75,00

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