Sorriso libertador de Angélica

Manoel de Oliveira trata, em seu filme, da discriminação

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Por Ubiratan Brasil
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Manoel de Oliveira cultua mais a palavra precisa que uma imagem inesquecível. Por isso, em seus filmes, os movimentos de câmera são raros e pouco acrescentam enquanto o diálogo é vital para o bom entendimento da trama. Tal predileção explica, em parte, sua paixão pela literatura e pelo teatro, formas artísticas que inspiram seus longas. Na seguinte entrevista, Oliveira comenta que chegou a alimentar um desdém pelo cinema, pois "não era capaz de filmar nem sonhos, nem pensamentos."E a ilusão, em O Estranho Caso de Angélica, é essencial na mensagem de Oliveira - mais que realizar o sonho de encontrar a menina morta, Isaac busca uma alternativa para um presente sufocante. Como o roteiro do longa foi planejado logo depois de encerrada a 2ª Guerra Mundial, Oliveira inspirava-se na situação político e social vivida pelos judeus da época, sobreviventes de uma terrível perseguição implantada pelo nazismo.A versão atual foi atualizada pelo diretor, mas a essência foi mantida: as perseguições continuam, ainda que distintas formas políticas ou econômicas. E, se na concepção original Isaac representava os judeus que fugiam da Europa pós-guerra em busca de liberdade, agora a imagem de Angélica desponta como um alívio contra as pressões atuais - é o sorriso da garota que o liberta e o livra de seus traumas.O Estranho Caso de Angélica trata de um assunto que lhe é caro, ou seja, o dos amores frustrados. O senhor poderia comentar isso?O Estranho Caso de Angélica fora pensado entre 1949/1952. Impossibilitado pelo governo fascista da época em que o desejei realizar e, assim impedido, até consenti numa publicação em França da planificação, fotos e desenhos que lhes enviei para a edição de um livrinho em francês e inglês. Nunca pensei que viria a realizar, até que o produtor François d"Artemare, que conhecera o projeto através do livrinho, propôs-me realizá-lo. Já eu, entretanto, vinha alterando os meus anteriores critérios cinematográficos. Até já pensava que a máquina de filmar em si não era capaz de filmar nem sonhos, nem pensamentos e que o teatro até era mais honesto, pois nunca os representava - o ator vinha em cena e dizia "eu sonhei isto e aquilo" ou o mesmo sobre o sonho. Mas o sonho neste particular caso se tornava indispensável e consubstancial, e Angélica não poderia existir sem ele. Penso que aqui o sonho é realizável por Isaac, um judeu afeito à perseguição do seu povo desde os velhos tempos, ora por uns, ora por outros. Para além de uma qualquer hipótese de amor frustrado face ao masculino-feminino, seria como uma fuga ao caos da situação presente e caótica que vimos no assoberbado o judeu Isaac.O filme também homenageia o cinema antigo, especialmente Méliès. Foi no cinema mudo que o senhor aprendeu que o ambiente fala por si mesmo?Logo após a invenção do cinema por Luís Lumière, nasceu o realismo no cinema. A seguir, Méliès criou o cinema fantástico e Max Linder deu-nos o cômico no cinema. Com essas três figuras, logo ficaram expressas as clássicas configurações cinematográficas, que foram usadas por todos os realizadores desde então, como configurações do ambiente de que fala.O seu cinema sempre foi calcado na palavra em especial e na literatura, em geral. Isso significa que a palavra, além de movimento, é também imagem que, é também cinema?Certamente. Todas as artes se filiam na vida corrente, seja no concreto das coisas e nos sentimentos, no real e no psicológico como no sobrenatural, para não falar do abstrato.Comente, por favor, o antagonismo vivido por Isaac, um fotógrafo dividido entre as convenções sociais e a criatividade.Haverá porventura um sentido de fuga a uma realidade perversa, e um apelo ao espírito que move toda a matéria a que se poderá dar o nome de Angélica.Fale um pouco mais sobre esse projeto tardio de filmar O Estranho Caso de Angélica.Como disse antes, só o realizei agora porque não me deixaram fazer antes. Era o tempo do fascismo e não queriam que o realizasse. Era, para eles, qualquer coisa fora do quadro, e isso era justamente o que o filme tinha de mais interessante. Era após a 2ª Guerra Mundial, tempo das ditaduras, em que Hitler perseguia judeus como Isaac.QUEM ÉMANOEL DE OLIVEIRADIRETOR, ROTEIRISTA E ATORNascido no Porto em 1908, é o mais velho cineasta em atividade no mundo. Estreou em 1931 com o curta Douro, Faina Fluvial e já soma 30 longas em sua carreira.

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