Ao se instalar na Colômbia em 1942 e lá viver em "degredo" até 1944, o secretário sente "os pés frios do mundo" e padece a tirania do soroche, para usar a palavra boliviana que expressa o mal das alturas. Ainda desconhecido do grande público, o escritor redige o conto Páramo, inédito em vida, hoje em Estas Estórias. Ali, ficcionaliza a viagem do diplomata a Bogotá e os anos nela vividos. Traços dos cem dias de internamento do cônsul em Baden-Baden sobressaem na asfixia sofrida pelo personagem em virtude da rarefação do ar nas alturas dos Andes. Coação marcial e pressão atmosférica se somam e levam o prosador a dramatizar em ficção simbólica a angústia existencial por que ele passa e que toma conta do mundo em guerra.
Inesperada citação do verso "no sono rancoroso dos minérios", extraído do poema A Máquina do Mundo, de Drummond, indica que a segunda viagem a Bogotá, feita em 1948, levou-o a rever o texto. Também reitera a ambição filosófica da ficção sugerida pela dupla e perigosa experiência vivida. Bogotá é seu Aleph, para lembrar o conto de Jorge Luis Borges.
Tomada a Platão, a epígrafe de Páramo emoldura o trágico aprendizado de vida: "Não me surpreenderia, com efeito, fosse verdade o que disse Eurípides: Quem sabe a vida é uma morte, e a morte uma vida?" Os opostos retornam no discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, quando se harmonizam: "... a gente morre é para provar que viveu." A comprovar visualmente a epígrafe, dois quadros do pintor Böcklin (1827-1901) - A Ilha dos Mortos e Vita Somnium Breve - são descritos em Páramo. Tomadas pelas cores frias e pela fantasmagoria, as duas telas levam o macabro a dialogar com a placidez da natureza e a inocência das crianças. Releia-se o poema Lembranças do Mundo Antigo, de Drummond.
Naqueles anos foi lançada no Brasil a tonificante Emulsão de Scott, cuja publicidade mostrava um homem carregando às costas o bacalhau pescado, de onde seria extraído o óleo de fígado reconstituinte da força humana. No conto, o protagonista se traveste e se colore por duplo seu que ele, durante todo o desenrolar da trama, carrega às costas como a um bacalhau. O duplo é produto da condição psicótica do personagem e, como réplica, é pulsão de morte fatídica e revigorante. Sob o jugo do duplo o diplomata vive a sensação diuturna da "morte imperfeita e temporária" causada pelo soroche (e pelo internamento). Em reação ao duplo - e com a ajuda de "médico judeu exilado" - sobrevive à morte. Vida é morte, é ressurreição. "O apalpar imenso de perigos", lemos no conto, "é um falecer no meio de trevas". Continuemos. Surge depois "o renascido, um homem mais real e novo". Define-se o renascido: "Cada criatura é um rascunho, a ser retocado sem cessar, até a hora da liberação pelo arcano."
O duplo, "seu companheiro por decreto do destino", é apresentado ao leitor como "o homem com a semelhança de cadáver" e sua alcunha será retocada por sinônimos durante o desenrolar do conto (o homem com o ar de cadáver, com fluidos de cadáver, o homem frio como um cadáver, etc.). Esse duplo é objetivado no conto através da rememoração pelo narrador/personagem de episódio verídico acontecido em Bogotá e narrado, como descobre Bairon Oswaldo Vélez, no livro Reminiscencias de Santafé y Bogotá (1899), que reúne crônicas de José María Cordovez Moure (1835-1918).
No primeiro número de Tusaaji (2012), revista eletrônica canadense especializada em tradução, Bairon transcreve o texto de Cordovez Moure, sem dúvida fonte da versão rosiana. O conto Páramo a retoma: por maldade misteriosa uma mulher conservou uma mocinha emparedada em um cubículo de sua casa. Depois de mutilá-la de muitas maneiras, vagarosa e atrozmente, dava-lhe comida emporcalhada e servia-lhe água poluída. Não havia motivo para a maldade. Quando descobriram a vítima - "restos, apenas, do que fora uma criatura humana, retirados da treva, de um monturo de vermes e excrementos próprios" - e a libertaram, o ódio da carcereira aumentou ainda mais.
Na singeleza de parábola sobre tempos de campos de concentração e de internamento, o episódio de Custodia, o la Emparedada, devidamente circunscrito pelos terríveis acontecimentos que norteiam a vida de Guimarães Rosa naqueles anos, abre o conto a uma leitura sem precedentes de sua literatura. O jogo entre poder e sujeição, entre mal e bem, entre ódio, prisão, liberdade e ódio maior, entre morte, esperança e ressurreição, entre dor física, soroche mental e alegria, se deixa circunscrever por uma pegada concreta e cosmopolita que, sem se desviar dos anseios por geografias mineiras ou por abstrações filosóficas, granjeia as alturas poéticas em que se asfixia Cruz e Sousa no pungente poema Emparedado. O poeta negro padece a maldição de Cam na própria pátria. Como o diplomata em Bogotá, carrega cadáveres às costas. Leiamos trecho do poema:
"Eu trazia, como cadáveres que me andassem funambulescamente amarrados às costas, num inquietante e interminável apodrecimento, todos os empirismos preconceituosos e não sei quanta camada morta..."