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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Sombras, eleições e Peter Pan

A terra do nunca é um não lugar que não existe, mas que, uma vez inventado, existe. Entendeu?

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Atualização:

Só Peter Pan conseguia se separar de sua sombra, conforme narrou, num longínquo 1902, James Matthew Barrie num livro originalmente intitulado The Little White Bird (A pequena ave branca). Foi somente em 1906 que surgiu o Peter Pan como um herói infantil que conhece uma “neverland” – um mundo paradoxal do nunca que é inaugurado na cabeça dos ficcionistas. A terra do nunca é um não lugar que não existe, mas que, uma vez inventado, existe. Entendeu? Ouvi essa história de minha tia Amália, irmã de papai, solteirona e contadora de contos de fadas. Uma pessoa marginal na família extensa na qual cresci e que hoje está nesta imensa terra do nunca ao lado de um monte de meninos com a coragem de enfrentar piratas e dragões; de mocinhas inocentes encantadas por fadas más; de princesas à espera de serem desvirginadas por seus apaixonados e reais consortes. A coragem do menino solitário em busca do seu destino (a sua terra do nunca) sempre me impressionava, tal como o “dragão” que, exatamente como a polícia política ou o radicalismo fanático, está acordado de olhos fechados e dorme quando os abre. 

Duelo. Peter Pan (Mateus Ribeiro) e Capitão Gancho (Daniel Boaventura) Foto: Amanda Perobelli/Estadão

Se você, leitor, encontrar um dragão, lembre-se dos conselhos de titia: de olhos abertos, dormem, mas de olhos fechados estão mais vivos do que nunca. É nesse jogo de oposições que vivemos o nosso inescapável “aqui e agora”.  Prisioneiros de nossos sistemas pelo seu lado visível e invisível, estamos sempre preocupados com o que poderá acontecer ou com o que virá de fora de nossos desejos e planos. Na terra do nunca, onde pessoas voam e perigos incríveis são banais – essas terras das fadas, bruxos, princesas e dragões –, as sombras têm vida própria e podem nos enganar porque, tal como o inconsciente freudiano, elas independem de nossos movimentos. Parece o pior da política nacional, não? Se vamos para a direita, nossa sombra vai para a esquerda e se ficamos parados, elas correm. No mundo real, as sombras são sombras. Na terra do nunca, elas nos irritam com suas vidas independentes. É o que vamos viver até as eleições que se aproximam. A competição eleitoral traz de volta um mundo de sombras soltas. Ele lembra uma velha quadrinha mineira que bem exprime a ética do ganhar a qualquer custo: “Tu fingiste que me enganaste e eu fingi que acreditei, foste tu que me enganaste ou fui eu que te enganei?”. 

Opinião por Roberto DaMatta
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