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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Sombras e trevas

O eclipse total do sol está simbolicamente harmônico com a Era Trump

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Atualização:

E lá se foi minha última chance de ver ao vivo um eclipse total do sol. Nem parcialmente ele será visto, nesta segunda-feira, em cidades brasileiras fora das regiões Norte e Nordeste. Mas em Brasília, sim, a partir das 16h55, com míseros 2% de visibilidade, muito pouco para competir com o eclipse moral que seus asteroides políticos diariamente nos proporcionam. 

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Os americanos o verão em alto estilo, de costa a costa, das florestas do Oregon às praias da Carolina do Sul, um orgástico show de sombras e trevas simbolicamente harmônico com a Era Trump. Orgástico porque costuma durar ainda menos que a obra mais célebre de John Cage (4’33”, quatro minutos e 33 segundos de absoluto silêncio), mesmo em seus melhores pontos de observação, como alguns rincões do Wyoming e em Hopkinsville (Kentucky), esta já apelidada de “Eclipseville”, onde o eclipse não ultrapassará o tempo de dois minutos e 40 segundos. 

Para curtir tão fugaz experiência, milhões de pessoas cruzam a América de carro, ônibus e trem, desde o início da semana. Boa parte delas carrega tendas e apetrechos de acampamento ou porque não conseguiram hospedagem ou porque não tinham como bancar os preços extorsivos que hotéis e motéis cobram nessas ocasiões. Um motel xexelento em Casper (Wyoming) não sai por menos de US$ 1.400 neste fim de semana. 

Mobilizações do gênero me fascinam. Jamais me abalaria para distâncias tão fatigantes, além de custosas e por vezes desconfortáveis, para ver um eclipse, parcial ou total, do nosso astro rei. Meu comodismo sempre foi maior que minha curiosidade por aventuras esotéricas O que me fascina são a disposição e a azáfama dos peregrinos eclípticos. Anne Dillard, uma das mais admiradas ensaístas de língua inglesa, detalhou num ensaio de 1982 a prazerosa trabalheira que lhe deu viajar quilômetros e mais quilômetros de estrada para chegar aos cafundós do Estado de Washington e apreciar nas condições mais favoráveis um eclipse total do sol. “Foi como se estivesse assistindo à cópia esmaecida de um filme em cores rodado na Idade Média”, concluía Dillard após detalhar com mestria descritiva as tonalidades metálicas impostas à paisagem e aos seres vivos pelo lento obscurecimento do Sol pela Lua. O máximo que concedi a fenômenos siderais como eclipses e passagem de cometas (aplaudir pôr do sol nas areias de Ipanema não conta) foi me abalar, na noite de 9 de fevereiro de 1986, até o morro da Urca, vulgo Pão de Açúcar, para observar a última passagem do cometa Halley no século passado. Decepção total. Visto pelo telescópio adrede instalado no alto do morro pela prefeitura carioca, o cometa ou sua coma mais parecia um tristonho ovo de codorna estrelado.

Temidos e endeusados pelos mais variados povos, mitologizados ao longo da história da humanidade, ideia fixa de Aristóteles, presença significativa na Bíblia, em Homero, Milton e Shakespeare, os eclipses ajudam sobretudo as pesquisas científicas. A Teoria Geral da Relatividade de Einstein foi “crismada” em 29 de maio de 1919, quando o astrônomo inglês Arthur Eddington estudou a interação das estrelas com o campo gravitacional do Sol durante o eclipse ocorrido naquele dia.

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Com base numa leitura hermética da Odisseia, astrônomos modernos estimaram que Ulisses teria chegado de volta à Itaca junto com o eclipse ocorrido no Mar Jônico em 16 de abril de 1178 a.C. Há controvérsias.

Eclipses, só me recordo daqueles que vi no cinema (Na Corte do Rei Arthur, Barrabás, 2001: Uma Odisseia no Espaço, Casa de Areia, A Árvore da Vida) ou li em contos e romances. Não há eclipse no homônimo filme de Antonioni. Aquela versão de Na Corte do Rei Arthur, com Bing Crosby, lançada mundialmente em 1949, foi meu primeiro contato visual com o fenômeno. Só bem mais tarde li a história original, de Mark Twain, que, aliás, nasceu e morreu ungido, predestinado ou o que seja pelo cometa Halley. Ele próprio profetizou: “Vi ao mundo no ano em que o Halley passou pela última vez e o deixarei quando ele voltar”. Predito e feito. Twain (1835-1910).

Provavelmente influenciado pelo conto Rip Van Winkle, de Washington Irving, publicado 70 anos antes, Twain teve uma sacada genial: Hank Martin, prosaico americano de Connecticut, perde os sentidos ao cair de um cavalo, em 1912, e desperta não 20 anos depois, como Van Winkle, mas 14 séculos antes, na corte do rei Arthur. Na iminência de ser enforcado por motivos que não vêm ao caso, o ianque faz crer ao cortesãos arturianos que o eclipse prestes a ocorrer (em 528 da Era Cristã) é um truque de sua engenhosidade superior. Quando o eclipse total do Sol de 528 d.C. põe o reino em polvorosa, o ianque aproveita para fugir de volta ao futuro.

Já o frei Bartolomé Arrazola não teve a mesma sorte com o mesmo truque. Servo da Igreja Católica e representante de Carlos V, rei de Espanha, na Guatemala quinhentista, perdeu-se no meio da selva e acabou prisioneiro de um agrupamento maia. Esgotadas todas as tentativas de convencer seus captores a não o imolarem a alguma divindade local, lembrou-se o religioso de que para aquele dia estava previsto um eclipse solar total. Crente que os nativos não conheciam a origem dos eclipses e muito menos seu calendário de ocorrências, mas na certa os temiam, ameaçou-os com um inopinado apagamento do Sol, caso lhe tirassem a vida. Os maias ouviram impassíveis a ameaça do frei e, enquanto o sacrificavam, um corifeu enunciava como uma ladainha as datas de todos os eclipses ocorridos antes da chegada dos espanhóis e dos que ainda estavam por vir. 

Acabo de resumir, mal e porcamente, um microconto do guatemalteco Augusto Monterroso, o melhor com um eclipse que conheço. E, seguramente, o mais conciso relato sobre a derrota do arrogante saber europeu diante da sabedoria científica de povos ditos primitivos. Reli o conto por esses dias e não pude deixar de imaginar Bartolomé Arrazola como um ancestral de Donald Trump. 

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Opinião por Sérgio Augusto
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