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Sofrimento, enigma em seu sentido e sua natureza

David Le Breton joga luz em tema sobre o qual paira um silêncio secular

Por Rodrigo Petronio
Atualização:

O antropólogo francês David Le Breton vem há anos se dedicando a um ramo do conhecimento cada vez mais em evidência: a antropologia do corpo. Desde Corpo e Sociedade (1985) e Antropologia do Corpo e Modernidade (1990) até Adeus ao Corpo (2013), publicado pela Editora Papirus, Le Breton tem ampliado o arco temático de questões e problemas presentes no nível das representações culturais, sociais e religiosas do corpo. Inspirado em George Simmel e em Marcel Mauss, o projeto de Le Breton parte da premissa de um “desvio antropológico”. Esse desvio consiste em uma rede de significados que se cruza com aspectos propriamente biológicos e médicos para definir os sentidos que o corpo humano assume em diversas tradições. A recente publicação de Antropologia da Dor pela Editora Fap-Unifesp, leva-nos a aprofundar essas reflexões instigantes. Le Breton divide a obra em seções. Elas abordam desde a experiência física da dor a seus aspectos antropológicos, de sua presença nas tradições religiosas à sua construção social. As duas seções finais tecem relações entre dor e modernidade e abordam os usos sociais da dor. O fio condutor da obra é a investigação da dor nas sociedades e o seu papel na conformação do anthropos. No que diz respeito à experiência, Le Breton pensa os limiares físicos da dor a partir de três tipos: as dores aguda, crônica e total. Como experiência, a dor é um “fracasso radical da linguagem”, pois está sempre aquém da possibilidade de ser comunicada. Mesmo assim, por paradoxal que pareça, é dessa dimensão experiencial que se nutrem relatos médicos, místicos e literários. Le Breton reorienta o conceito de “eficácia simbólica” desenvolvido por Claude Lévi-Strauss. E o faz para ressaltar a dimensão não biológica das representações do corpo, e, portanto, da noção mesma de dor. Afinal, em muitas culturas tradicionais, a definição de corpo é difusa, a ponto de ser quase inexistente, algo semelhante a alma ou espírito, no sentido ocidental. Não havendo contraste corpo-alma, tampouco existiria algo que poderíamos chamar de corpo. Esse é o dilema epistemológico mais sensível. A partir dele, Le Breton define a dor pela performance presente nos enunciados e nas ritualizações culturais, mobilizados em torno de experiências entendidas como dolorosas. A dor promove uma passagem do pathos ao ethos, de uma afecção a uma axiologia (eixo de valores). Le Breton analisa essa transição, do Livro de Jó às matrizes cristã e islâmica. Também aborda os sentidos da dor nas espiritualidades orientais. Em todas elas, fica evidente a relação entre dor e sofrimento. E entre sofrimento e justiça. Os sistemas religiosos seriam meios de explicação moral dos fundamentos físicos e metafísicos da dor. Teriam criado também uma economia da dor, na qual estaria presente uma lógica envolvendo retribuição, graça, misericórdia, arrependimento, perdão, penitência. A modernidade e a construção social da dor aprofundam alguns impasses das tradições antigas. E esse é um dos pontos nucleares dos estudos de Le Breton: a conexão paradoxal entre a dor, a humanização e o problema do mal. Paradoxal porque se a dor, como materialização e nossa mortalidade, fornece a escala de valores que nos define como humanos, tampouco a dor e o sofrimento podem ser explicados de modo racional. Racionalizar a dor por meio do trabalho e daquilo que Max Weber definiu como “ascetismo intramundano” tem sido a tarefa da modernidade. Vale fazer apenas duas observações sobre a obra de Le Breton. Primeira: a passagem pelas religiões abraâmicas e as espiritualidades orientais acaba sendo muito panorâmica, com perdas de penetração analítica. Segunda: embora procure superar o dualismo corpo-alma e natureza-cultura de algumas abordagens antropológicas, o autor retorna ao seio dessas categorias fundantes em alguns momentos, redesenhando os limites corpo-alma, para apagá-los em seguida. Nada mais compreensível. Trata-se de um trabalho difícil, pela própria ausência de vocabulário para superar essa dicotomia. Por fim, uma questão. Haveria conteúdos criptorreligiosos por trás de todo dolorismo, mesmo quando ele é ateu e secular? Não poderíamos supor um aspecto positivo no projeto moderno de mitigação e erradicação da dor humana, deixando de entendê-lo apenas na acepção negativa da cultura farmacológica e dos cenários das distopias? Esse é um problema a ser enfrentado. Quanto ao estudo de Le Breton, é primoroso sob diversos pontos de vista. E lança luzes sobre o enigma da dor. Por mais que ela seja evidente em suas cicatrizes, permanece como enigma em sua natureza, sentido e motivação. RODRIGO PETRONIO É ESCRITOR E FILÓSOFO. AUTOR, ORGANIZADOR E EDITOR DE DEZENAS DE OBRAS. TEM MESTRADO EM TEORIA DA LITERATURA (UERJ)

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