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Coluna do escritor e arquiteto Milton Hatoum sobre literatura e cidades

Só os poetas sabem gritar na escuridão

A poesia é inútil para a vida material, mas não para a imaginação, a emoção, os sentimentos

Por Milton Hatoum
Atualização:

“É hora de trazer as palavras até aqui nesta linha de frente onde as linguagens se bifurcam...”  Marcos Siscar (Hora de Poesia, do livro Isto Não É Um Documentário)

Esperou o fim da conversa virtual para me dizer que a filha dele era apaixonada por literatura e queria ser poeta. Depois perguntou: Como ela vai ganhar dinheiro? Como vai viver de poesia?  Não sabia responder àquele pai; os olhos dele piscavam na tela, escutei um canto de pássaro, talvez engaiolado. O tom da pergunta pedia uma resposta, e eu fiquei pensativo por alguns segundos. O pai, também em silêncio, me olhava de algum lugar do Brasil. Tanto silêncio me levou aos poemas difíceis de Mallarmé e, quase ao mesmo tempo, ao livro da Leyla Perrone-Moisés: Inútil Poesia.  Mencionei ao pai o poeta francês e o livro de ensaios da Leyla, e acrescentei que era raro uma pessoa receber dinheiro com poesia. Com leitura, imaginação e muito trabalho com a linguagem, um poeta ou uma poetisa talvez ganhasse o pão de cada dia com sua noite. E se, além desses atributos, a filha dele tivesse um pouco de sorte, podia conquistar o Nobel, como a chilena Gabriela Mistral e, neste ano, a estadunidense Louise Glück. Falei que a poesia estava fora do sistema produtivo e utilitarista, e era refratária ao mero consumo e aos ditames do mercado. Livros de poesia são comercializados, mas raríssimos se tornam best-sellers. Poetas e romancistas eram amadores, fascinados pela linguagem, e a maioria tinha uma profissão. Brinquei, citando uma frase de Jorge Luis Borges: “Ninguém é poeta das oito da manhã às cinco da tarde”.  O pai sorriu pela primeira vez. Era um homem de uns 40 e poucos anos, e a filha, de uns 16 ou 17. Com discrição, perguntei o que ele fazia.  “Sou empreiteiro... Construo edifícios”, respondeu.  Mas a poesia é um edifício estranho ao resto do mundo, eu disse, lembrando uma frase de Mallarmé, citada no ensaio da Leyla.  “Minha filha gosta muito de ler, passa a noite lendo, mas é craque em matemática. Pode ser engenheira e poeta.”  Sua filha pode ter qualquer profissão e ser poeta, mas ser poeta não é uma profissão, e sim um destino.  Um pássaro, talvez outro, cantou com agudeza, e logo foi abafado pelo ruído de uma serra circular.  “Não sei o que fazer”, confessou o pai. Não faça nada, eu disse. A vida se faz. Ou faça uma terapia. Na melhor das hipóteses, sua filha pode ser uma boa calculista de estrutura e uma poeta talentosa.  Para não ser vago demais, dei o exemplo de Joaquim Cardozo.  O pai desconhecia o poeta Joaquim Cardozo, mas sabia que o engenheiro pernambucano havia calculado estruturas complexas de obras monumentais em Brasília. Então dei exemplos de pessoas pobres, ricas e remediadas que tinham exercido diferentes atividades profissionais, mas que não podiam viver sem a poesia. “Mas se a poesia é inútil!”, protestou. Inútil para a vida material, mas não para a imaginação, a emoção, os sentimentos. E para sensibilizá-lo, acrescentei: é fundamental para o espírito de uma sociedade e para a liberdade.  “E se, na pior das hipóteses, minha filha não for uma grande calculista e poeta?” Mas essa é uma questão para você ou para ela?  “O futuro da minha filha é uma grande questão para mim.”  Não é saudável viver no futuro. A grande questão para sua filha e para todo mundo é sobreviver no presente. Se possível, com um pouco de felicidade e amor.  Nós dois sumimos da tela: mais um apagão em tempo de pandemia. E enquanto olhava o retângulo escuro do computador, me lembrei de uma frase de Joseph Brodsky: Só um poeta sabe gritar na escuridão. É ESCRITOR E ARQUITETO, AUTOR DE ‘DOIS IRMÃOS’ E ‘CINZAS DO NORTE’

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