Simon Schama fala sobre seu livro 'O Poder da Arte'

Historiador inglês mostra como 8 mestres, de Caravaggio a Rothko, subverteram o modo de ver o mundo

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Por Antonio Gonçalves Filho
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Aos 34 anos, Rembrandt era um displicente artista que mais parecia um fidalgo vestido de seda. Aos 50, era um velho pintor que havia perdido tudo: as roupas finas, o crédito, a casa e a proteção dos poderosos. Veja a tela acima, O Artista no Ateliê, de 1629. Nela, o holandês, ainda desconhecido, pinta sua pobre figura de 23 anos num modesto ateliê de paredes descascadas, antes de ser descoberto pelo estadista e poeta Constantijn Huygens e aceitar encomendas da corte de Haia. E foi justamente como retratista de nobres mimados que Rembrandt usou seu talento para forçar as fronteiras da pintura, tornando-a uma experiência real, segundo o historiador e crítico de arte britânico Simon Schama, que lança agora no Brasil o seu essencial O Poder da Arte, livro sobre a popular série de televisão homônima exibida há quatro anos pela BBC inglesa. Rembrandt e outros sete pintores de diferentes épocas servem a Schama na defesa de sua tese: a de que a arte "maior" tem o poder de mudar nossa percepção para sempre. Após um encontro com os grandes mestres, olhar um rosto, uma cor ou um corpo nunca mais será uma experiência banal. Ajustamo-nos ao olhar do gênio com reverência mais que religiosa, traga o artista visões de beleza ou de horror.

 

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Schama foi atrás de oito desses grandes momentos de comoção para mostrar como a arte influencia os poderosos e como o poder também dá as cartas na arte - tema muito apropriado quando as relações entre criação artística e política definem o espírito da 29ª. Bienal de São Paulo. Sua série televisiva e o livro são um tanto impiedosos com os criadores que escolheu. Ao contrário das igrejas e dos museus, essa galeria particular de Schama não buscou a serenidade, mas o drama retratado em obras de oito artistas que escolheu: Caravaggio (Davi com a Cabeça de Golias, 1605); Bernini (O Êxtase de Santa Teresa, 1644-7); Rembrandt (A Conspiração dos Batavos sob Claudius Civilis, 1666), Davi (Marat Assassinado, 1793); Turner (Navio Negreiro, 1840), Van Gogh (Trigal com Corvos, 1890), Picasso (Guernica, 1937) e Rothko (Preto sobre Marrom, 1958).

 

Não por acaso, o centro de sua atenção é Rembrandt. Schama escreveu um livro de referência sobre ele, Rembrandt’s Eyes. A bancarrota financeira do pintor holandês, em 1656, motivada por seu extravagante estilo de vida, conduziu-o a um processo depressivo. Até mesmo sua pintura entrou em baixa. Sua tela A Conspiração de Claudius Civilis foi rejeitada pelos fidalgos de Amsterdã e a prefeitura local ficou sem a cena do soldado que lutou por Roma, mas mudou de lado, convertido aos batavos. Rembrandt simplesmente inventava a pintura histórica libertando-a, segundo Schama, "do decoro do classicismo". Em outras palavras, ele trocara nobres republicanos por gente nada solene, um grupo de bandidos embriagados com as quais o homem comum se identificava. Sobre Rembrandt e outros proscritos que desafiaram os poderosos no mundo da arte, Schama concedeu, por telefone, de Nova York, a entrevista a seguir ao Sabático.

 

Tela 'O Artista no Ateliê', de 1629, de Rembrant. Foto: Reprodução

 

Em O Poder da Arte o senhor enfatiza o impacto de oito grandes pintores sobre a sociedade em que viveram para contar a evolução da arte, do Renascimento italiano ao expressionismo abstrato americano. Por que o senhor partiu de Caravaggio e terminou em Rothko?

Primeiro, porque vida e arte se confundem na obra de Caravaggio, tão autoconsciente do seu drama que pintou a si mesmo como o gigante decapitado em Davi com a Cabeça de Golias, tela que acabou nas mãos do cardeal Scipione Borghese quando o pintor morreu. Caravaggio entrega literalmente sua cabeça ao cardeal, esperando o perdão póstumo, ele que incomodou os homens da Igreja e os leigos com seu comportamento de proscrito e suas blasfêmias, como pintar santos adotando como modelos ladrões, rufiões e prostitutas. A pena capital, que garantia uma recompensa ao assassino foragido - ele mesmo - seria finalmente suspensa com uma obra-prima em que Caravaggio teria feito, na verdade, dois autorretratos - o primeiro como Davi, banhado pela luz divina, e o segundo como Golias, o gigante devasso, hipersexualizado e assassino. Já Rothko não acreditava no poder de a arte figurativa envolver o espectador, de traduzir a tragédia vivida por ele cotidianamente, especialmente numa sociedade de consumo como a americana do pós-guerra. Considero heroico e desafiador seu gesto de aceitar a encomenda da Seagram, em 1958, de pintar um painel para ficar ao lado de Pollock e Picasso em seu elegante Four Seasons. Rothko, então, desafiou o olhar dos frequentadores do espaço da Seagram, confrontando-os com a tragédia da condição humana. Um pouco como Caravaggio, ele devolveu ao espectador a possibilidade de uma experiência mística dentro da voraz sociedade americana. Tudo isso sem narração - ele que adorava a literatura de Shakespeare e as tragédias gregas -, apenas com blocos de cor. Para mim, foi uma descoberta emocionante quando vi as primeiras telas abstratas de Rothko na Tate há 40 anos.

 

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Quando o senhor se refere à vida de Caravaggio, fala dele como o cristão devoto e criminoso em busca da redenção, um pintor em que arte e vida são sinônimos, mas alerta o leitor para não confundir o homem "que produziu a pintura fisicamente mais intensa da cristandade" com o assassino. Lembro que, no Brasil, houve um pintor que também matou um homem, o gaúcho Iberê Camargo, e passou, desde então, a ter sua pintura associada automaticamente à tragédia. Não se trata de um equívoco crítico?

Não é comum que um artista, mesmo Caravaggio, pinte a si mesmo como um ogro, um gigante filisteu como Golias, assumindo essa autoacusação, ele que foi o mais agressivo e antissocial dos pintores. Assim, é normal que alguém associe sua vida às obras de arte que produziu, ainda mais que Caravaggio usou prostitutas e biscateiros como modelos. Mas a Igreja também precisava desse drama visual feito de sangue e luz para comover seus fiéis, distantes da grandiosidade renascentista. A Igreja servia a Caravaggio e este a ela. Parecia uma associação perfeita, não fosse o drama da insociabilidade do pintor real. Assim, quando o mostrei na série de televisão, fui criticado por me render ao que chamavam de "melodrama" romântico, quando o que queria mostrar era sua melancolia, sua crença no poder do olhar transformador. Não se tratava mais do jogo ilusionista do Renascimento, mas uma espécie de psicodrama. Não conheço a história de Iberê Camargo, mas Caravaggio entendeu com certeza que sua vida poderia ser um exemplo de redenção, transformando o espectador em testemunha de seu drama. Ele não separou sua vida de sua arte, mas fez desse amálgama o triunfo da graça redentora, a expiação do pecado por meio da pintura.

 

Rembrandt parece o artista mais próximo do seu universo, até mesmo porque o senhor será sempre lembrado como o autor de Rembrandt’s Eyes. O senhor diria que O Poder da Arte alterou sua visão da pintura do artista holandês? E por que razão Rembrandt mudou tanto depois de pintar Claudius Civilis? Seu drama pessoal seria capaz de transformar uma obra-prima como essa? Não seria uma projeção romântica afirmar que esse foi o prelúdio de seu fim?

Bem antes, em 1640, alguma coisa mudou definitivamente na vida de Rembrandt. O que ele tentou fazer em Claudius Civilis duas décadas depois foi a negação bárbara de seu destino. Ele poderia ter feito de Civilis algo tão monumental como a Ronda Noturna, mas a liberdade, nesse momento, parecia mais importante que uma cena solene, majestosa. Rembrandt, ao contrário, não se rendeu ao cânon da pintura histórica, que um crítico de bom gosto poderia aprovar, mas assumiu o papel do soldado biografado, retratando-o com tintas selvagens, quase como um protoexpressionista, vencido pelo drama pessoal do declínio financeiro. Como só nos restou um fragmento minúsculo do que seria supostamente outra obra-prima do mestre holandês, tudo o que se pode dizer é que a parte que sobrou é espantosamente audaciosa. Rembrandt não queria seduzir um público culto, mas pessoas sensíveis, capazes de detectar um novo caminho para a vida e a pintura. Rembrandt era um artista em declínio junto aos poderosos quando fez Claudius Civilis. Parece natural que, em seus últimos quadros, esperasse pelo menos o reconhecimento celestial, como Caravaggio, e uma prova disso é Simeão com o Menino Jesus no Templo, um cego iluminado com a luz que o menino irradia no templo. Ousaria mesmo dizer que essa é uma antecipação do expressionismo.

 

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Sobre Turner, o senhor termina seu quinto ensaio contando como a tela Navio Negreiro foi parar na vida de John Ruskin presenteada pelo pai do futuro crítico, uma obra de importância política enorme por ter sido uma espécie de manifesto abolicionista do pintor, que condenou oficialmente o tráfico de escravos americano e retratou a tragédia de suas vidas ao pintar um outro quadro com cenas de um grande naufrágio em que crianças, homens e mulheres africanos foram devorados por tubarões no Caribe. Ruskin viu Navio Negreiro da maneira como o vemos hoje em Boston?

Não, até mesmo porque Ruskin e seu pai fizeram uma restauração desastrosa da tela (ri). Bem, não há como seguir as palavras de Ruskin para entender o que está por trás dela. Turner era fascinado por novas tecnologias, especialmente a fotografia, mas sabia que ela era apenas capaz de captar as aparências, enquanto a pintura poderia oferecer mais. O modo que Turner e os futuros impressionistas pintaram consistiu exatamente em buscar o que estava por trás da superfície, o que justifica a estreita ligação entre vida e a arte, o jeito como o artista identifica o drama que surge à frente, as miragens que confundem o olhar. Ruskin teve o grande mérito de reconhecer a capacidade visionária de Turner. Navio Negreiro, para mim, é uma prova vigorosa de que a força moral e a poesia podem e devem andar juntas.

 

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Muitos biógrafos insistem que a pintura de Van Gogh é essencialmente mística, mas o senhor observa que a sua força gravitacional é ainda mais importante por obrigar o céu a cair na terra. Seria, então, a força mística de Van Gogh diferente do realista Jean-François Millet, seu modelo?

Temo que sim. A visão mística de Millet se encaixa na tradição católica. Contra os excessos do romantismo, ele se dedica a pintar os camponeses de Barbizon integrados à natureza, a fazer do embate entre as cores uma representação metafórica da luz divina garantida por essa integração. Já nas paisagens de Van Gogh essa luz transcendental é de uma outra ordem. Ele não quer, como Gauguin, sair do chão. Quer que o céu se misture à terra e se torne indistinguível, um território do indiferenciado. Millet é monumental, mas está também preso à terra, é pesado demais. Já Van Gogh é todo gozo, uma pintura equivalente a um orgasmo cromático em que o espírito se ilumina com a oposição de cores como o amarelo e o violeta, também complementares, cores que expõem um drama não apenas formal, mas existencial. Van Gogh se dá conta, enfim, de que a religião pode ser uma barreira. Ele é intensamente religioso, devocional, mas de uma maneira pungente, moderna.

 

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A respeito de Picasso, o senhor observa que pode parecer uma surpresa que um homem indiferente ao objetivo da arte tenha produzido a obra engajada mais famosa do século 20, Guernica. Essa relação entre arte e política é, aliás, o tema da 29ª Bienal de São Paulo. O senhor diria que artistas do passado como o clássico Davi e o cubista Picasso tinham uma concepção de arte política diferente dos contemporâneos?

Bem, o certo é que Picasso já se distanciava dos mestres do passado por uma visão de mundo diametralmente oposta a gênios como Velázquez, para citar seu conterrâneo que pintou um rei a cavalo como representação simbólica de um líder domando a força selvagem de seus comandados. Já Picasso pintou um menino nu ao lado de um cavalo sem arreios por um território inidentificável, o que faz toda a diferença. Nele, ninguém conduz ninguém. Esse elogio à liberdade não pode ser ignorado, a despeito de Picasso ser reconhecido como um animal político, formado na experiência do exílio, na paixão partidária. Em Picasso, o símbolo antecede a política e parece claro que assim seja quando vemos uma obra como Guernica, em que o manifesto político-partidário é substituído por um inteligente jogo simbólico em que a casa é abrigo e ao mesmo tempo alvo, em que a luz sugere violência e martírio, uma projeção de nossos piores pesadelos. Picasso não agiu como documentarista, mas como artista. Faz toda a diferença quando se compara sua obra ao trabalho de contemporâneos. Guernica queima com seu calor moral.

 

Às vezes essa força não é imediatamente reconhecida. O senhor mesmo admite que, ao ver Rothko pela primeira vez em Londres, em fevereiro de 1970, não sentiu o impacto da força de sua pintura nos nove murais da Seagram que foram exibidos na Tate Gallery (hoje Tate Britain) de Londres. Para piorar, Rothko não era o mais simpático dos tipos. Ainda por cima, parecia avesso às palavras para explicar sua obra e tinha acabado de se matar. O senhor diria que sua antipatia por essa pintura era por ter uma estreita ligação com a narrativa literária transcendental?

Demorei muito para ver Rothko na Tate, pois estava com 25 anos e me interessava exclusivamente pela arte que fazia sucesso em Londres na época, a dos artistas ligados ao movimento pop, do inglês Richard Hamilton aos americanos Jasper Johns e Andy Warhol. Rothko era transcendental, algo religioso e quase tão chato quanto ir à igreja ou à sinagoga, um desafio existencial de um homem que havia saído da Rússia e não encontrou diálogo com seus pares nos EUA. Era um imigrante, que pintava pobres judeus como ele, até ser desafiado a abandonar suas figuras nos anos 1940 e enfrentar a linguagem dos expressionistas abstratos, trabalhando puros blocos de cor não como combinações cromáticas simples, mas construções de um espaço vital, habitável. Nesse aspecto, ele está muito próximo a Turner. Ambos dramatizam o espaço, trabalham com sua expansão. Rothko dizia que não eram puras abstrações essa telas, que elas não eram feitas para o olho repousar, mas desafiar o espectador. À medida que sua vida ficava mais pesada, essas cores se tornaram mais escuras, entre o cinza e o preto, mas com radiâncias que evocavam as cores brilhantes dos anos 1950. Não diria, portanto, que essa primeira experiência com Rothko na Tate há 40 anos foi assustadora, mas apaziguadora. Era uma resposta sua ao silêncio literário. Não creio que nenhum artista moderno tenha feito tanto para incluir o espectador em seu trabalho, em sua luz.

 

Em seu ensaio sobre Bernini o senhor diz que é quase impossível ver O Êxtase de Santa Teresa com um olhar inocente, uma escultura classificada em seu livro como uma obra-prima entre o sagrado mistério e a convulsão orgiástica. Não seria possível relacionar esse êxtase ao da morte, como na escultura Ludovica Albertoni do mesmo autor?

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Acho que Bernini sabia que essa sua escultura iria provocar mal-entendidos, mas é certo que estamos diante do êxtase de uma santa em que o anseio da alma de ser possuída equivale a um desejo erótico, carnal, uma experiência física vista com cinismo por aristocratas de passagem por Roma. Ela é, portanto, diferente da escultura de Ludovica Albertoni realizada 30 anos depois, em 1674. A santa agoniza de verdade, na cama. Bernini já estava na casa dos 70 e talvez não se sentisse capaz de tanta sensualidade, ele que dividia a mesma devoção cristã de um devasso como Caravaggio - e com igual instinto assassino.

 

Alguns dos espectadores ingleses da série da BBC O Poder da Arte, lançada em DVD na Inglaterra no mesmo ano, 2006, disseram que o senhor é uma espécie de Carl Sagan das artes visuais, que acaba sendo perverso com os artistas franceses e ingleses. O que acha disso?

(Ri) Eu adoro o Carl Sagan e não me importo nem um pouco com a comparação. Só não acho que tenha sido perverso. Acontece que muitos querem ver na arte uma serenidade que não pertence a ela.

 

O senhor diria que hoje a arte é mais influenciada pelo poder ou que ela ainda tem o poder transformador da época de Davi?

Nosso tempo sofre outro tipo de influência, não o da experiência revolucionária do Marat de Davi, mas a do poder da iluminação da condição humana.

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