Dissolvemos a ideia estabelecida de dois sexos com o redesenho fundado na liberdade, pois o fisiológico não determina mais nem as práticas eróticas, nem a construção de um grupo familiar. O aparato biológico com o qual nascíamos (e morríamos) foi repensado pela categoria de gênero. Podemos nascer como “homens” ou “mulheres", mas viver atualizando muitas formas de masculinidade e feminilidade.
O dualismo arcaico constituído de masculino e feminino – de homem e mulher – foi substituído pelo direito de escolher. Aliás, mesmo quando havia somente dois sexos, o ator principal do drama (o masculino) e o seu coadjuvante oprimido, o feminino, como nos revelou Simone de Beauvoir num livro fundacional, O Segundo Sexo, publicado em 1949, o mesmo ano, aliás, em que veio à luz o igualmente clássico As Estruturas Elementares do Parentesco, de Claude Lévi-Strauss, um estudo que confirmava as mulheres como objeto de trocas matrimoniais realizadas por seus pais e irmãos – sempre existiram homens femininos e mulheres masculinas.
Já sabíamos que certos atributos tradicionais de gênero – virilidade, sensualidade, docilidade, intuição, coragem, persistência, passividade, racionalidade, etc. – não estavam em sincronia com ovários e testículos.
A possibilidade da reinvenção erótica permitiu redefinir a ontologia exclusiva do macho ou fêmea. Tanto Freud quanto Margaret Mead revelaram como sistemas de crenças marcam e definem o quem é macho ou fêmea, tornando a classificação simbólica mais importante do que a visão universalista e evolucionista tradicional. Freud, por exemplo, falou em bissexualidade. Mead, por seu turno, descreveu sociedades nas quais os homens eram passivos e as mulheres, ativas. Tal variedade, porém, não foi tomada como uma receita. O que se demonstrava era um conjunto de alternativas a serem respeitadas e não uma outra camisa de força a ser seguida.
Em relação à etnia, ocorreu um processo semelhante. Uma pessoa pode nascer “negra” ou “oriental” e viver e morrer como “branca”: americana ou europeia. Ela pode manejar o seu corpo para nele reproduzir o padrão étnico ocidental ou fazer o movimento inverso, orientalizando-se ou africanizando-se. Ademais, dinheiro e celebrização permitem mais liberdade, bem como maior legitimidade, mesmo diante de inevitáveis incoerências.
O fato é que, neste nosso mundo que oscila entre liberdade e inquietação, podemos escolher o país com o qual queremos nos associar, de tal modo que o nascimento e a descendência não mais determinam nossas consciências e etnias.
Mas, se um viés de liberdade centrada no individualismo marca a subjetividade sexual e o pertencimento a algum grupo, tudo muda quando falamos de idade. Porque há na idade uma progressão determinante em contraste com a liberdade. Refiro-me ao fato de que todos nós temos um início e um inevitável fim.
Temos todas as liberdades, menos a liberdade de escapar da decadência biológica que vai nos levar – tenhamos ou não mudado de sexo ou de etnia – para o fim.
Podemos evitar a branquidão que é azeda ou a negritude que significava escravidão; podemos transformar o masculino em feminino (e vice-versa), mas não temos como evitar que nascemos, passamos pela juventude, entramos na idade adulta, envelhecemos e morremos.
Como assimilar essa inevitabilidade da velhice que nem todos, aliás, experimentam, sem pôr em suspeição as utopias das escolhas individuais ou, como dizia Lévi-Strauss, as ilusões da liberdade? Como, num mundo de liberdade infinita, aceitar essa determinação coercitiva da idade?
Podemos reprimi-la, mas não podemos viver sem um corpo que envelhece e impõe um princípio de suficiência no conjunto de escolhas que reproduzem a onipotência do pós-capitalismo apoiado no consumo e na alta tecnologia. Esse progresso que promete uma vida sem dor nas costas. O envelhecer prova que, tanto como o planeta e o capitalismo, nós também temos limites. É preciso um mínimo de asas para voar.
A inexorabilidade da idade deve ser lembrada neste Brasil onde a aposentadoria sinaliza velhice e promoção, livrando-nos do trabalho lido como castigo e estigma escravista e não como um chamado ou vocação. Entrar nisso, porém é, como dizia Kipling, uma outra história...
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PS: Dedico essa reflexão à memória de Irma Brant, com o meu afetuoso abraço para Arnaldo e Jaqueline.