Sexo e prazer, no Museu Britânico

A exposição ‘Shunga’ traz valiosos exemplares da arte produzida no Japão desde 1600, com traço fantasioso e desinibido

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Por Maria Ignez Barbosa
Atualização:

No tradicional e sisudo British Museum, com acompanhamento paterno sugerido para menores de 16 anos, o que provocou um artigo na imprensa intitulado Shunga Bunga, a exposição Shunga, Sexo e Prazer na Arte Japonesa encanta e surpreende. Apesar de ousada - nada sobra para a imaginação -, não sugere pornografia, mas apenas deleite, ternura e fantasia. E mostra arte de extremo requinte e qualidade.

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As 170 obras expostas, entre pinturas, desenhos, gravuras, scrolls, objetos e livros belamente ilustrados, produzidas no Japão entre 1600 e 1900, durante o período Edo, quando o país esteve fechado para o mundo exterior, são conhecidas como Shunga, arte primaveril ou de travesseiro e, muitas delas, apesar do cunho popular que tinham à época, são assinadas por mestres da arte japonesa hoje consagrados como Kitagawa Utamaro e Katsushika Hokusai.

Shunga, uma forma de arte bem humorada e sem culpa que expressa e também ensina sobre o sexo e o prazer através de um desenho erótico e sensual produzido em grande quantidade (os livros faziam parte do enxoval das noivas), é um fenômeno raro na cultura pré-moderna do mundo. Sua popularidade no Japão era tanta que atravessou incólume o período confucionista que pregava a contenção e o dever e que promulgou duras leis sobre o adultério.

Teria sido de certo modo uma arte underground do Japão dos samurais, apesar de muitas pinturas luxuosas terem sido encomendadas por membros da classe dominante aos artistas da escola Kano. Havia nas obras, além da fantasia (os órgãos genitais aparecem sempre superdimensionados), também humor e zombaria. Nelas, nenhum vestígio de violência ou crueldade.

Em um dos livros para mulheres, zomba-se das regras convencionais de obediência aos sogros e se advoga o sexo como fundamental para um casamento feliz. A sexualidade da mulher era naturalmente reconhecida e, mesmo o sexo entre mulheres ou homens, era aceito em muitos grupos sociais. Numa gravura de Hokusai, O Sonho da Mulher do Pescador, dois polvos com gigantescos tentáculos fazem amor com a personagem que mantém o rosto estático. Na série Ilustrações Eróticas para os Doze Meses, de 1788, criadas por Katsukawa Shuncho, marido e mulher se deleitam na janela em pleno verão sob os uivos de um cuco.

O declínio da produção Shunga só aconteceu no final do século 19 quando o Japão foi confrontado com a moral puritana que impunha a total separação entre arte e pornografia e com as inibições sexuais do cristianismo e do islamismo. Um tempo em que o sexo passou a ser visto pelas religiões como vergonhoso e confinado à cama conjugal. Pois nada disso, como se pode ver nas obras expostas e que tudo expõe apesar das profusas vestimentas dos personagens, acontecia no Japão pré-moderno onde, sem hipocrisia, o sexo era praticado sem censura e discutido entre amigos.

Embora guardada em prateleiras, no século 19, a arte Shunga já fascinava europeus e americanos por seus traços e elementos de fantasia. Rodin se tornou dela um grande admirador, assim como os artistas Toulouse-Lautrec, Picasso, Aubrey Birdsley e John Singer Sargent, que deixaram não apenas que sua própria arte fosse influenciada por esse tipo de traçado fantasioso e desinibido, como se tornaram colecionadores dessas gravuras e pinturas japonesas.

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No século 20, a Shunga desapareceu totalmente da memória popular em seu país de origem. Censurada, virou tabu.

O Museu Britânico, que abriga a exposição até 5 de janeiro de 2014 com exemplares Shunga de coleções japonesas, europeias e americanas, pode se gabar de ter comprado as suas primeiras e preciosas gravuras Shunga bem antes de qualquer outro museu, em 1865, do colecionador inglês George Witt, e por ter hoje a maior coleção de Shunga fora do Japão. E também por ter conseguido, apesar dos cuidados em evitar qualquer tipo de escândalo em torno da atual mostra que naturalmente atrai milhares de visitantes, ao ponto de ter convidado uma velha senhora de 80 anos para inaugurá-la, que essa arte japonesa na qual homens e mulheres são vistos como sexualmente livres, iguais e sem preconceitos, ganhasse respeitabilidade no ocidente.

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