Sexo e morte no jogo de duplos

Joca Reiners Terron foi ao Egito para ambientar seu romance sobre irmãos gêmeos muito distintos

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Por Ubiratan Brasil
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William e Wilson são dois gêmeos muito distintos - enquanto o primeiro alterna violência com estados taciturnos, o outro é inteligente e dono de gestos femininos. A vida de ambos sofre uma profunda ruptura quando Wilson, obcecado pela interpretação de Elizabeth Taylor em Cleópatra, decide livrar-se da semelhança com o irmão e, depois de uma trama mirabolante que envolve troca de sexo e assassinatos, o destino os conduz à cidade do Cairo, capital do Egito. Lá, os irmãos esperam se encontrar.O que pareceria um autêntico exemplo de pulp fiction torna-se uma literatura bem trabalhada por Joca Reiners Terron que, em Do Fundo do Poço se Vê a Lua (Companhia das Letras), une com maestria o real e o ficcional no jogo de duplos. O livro pertence à coleção Amores Expressos, ou seja, Terron precisou viver alguns dias no Cairo para descobrir o ambiente e, quem sabe, sentir-se motivado de uma forma diferente. Sobre a obra, que será lançada hoje à noite na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, o autor respondeu às seguintes questões.A cidade do Cairo foi um ponto de partida para seu livro ou ela entrou em uma história já previamente pensada?Só após seis meses de retornar do Cairo é que a história começou a ganhar os contornos que teria na versão final do livro. Antes da viagem eu sabia apenas que exploraria uma relação de amor fraternal. O que mais influenciou sua escrita: as experiências negativas ou as positivas passadas no Cairo? Como foi esse processo?Eu realmente não gostei de minha temporada no Egito. As condições de hospedagem não foram das melhores e fui exposto à realidade urbana de lá, que é terrível. Diante do Cairo, São Paulo é um sonho cartesiano. Com o passar do tempo, percebi que a experiência não teria sido tão intensa se não tivesse sido assim. O fato de ter sido ruim afetou o livro positivamente.Em sua obra, parece ser forte a tensão entre o real e o ficcional, além da metaliteratura. Esse seria um caminho a ser seguido ou, por outro lado, a ser contornado?É verdade. Não acredito que seja possível escrever ficção atualmente e não investigar esses limites, ainda mais com a noção de realidade sendo cada vez mais expandida. Assim, escrever sem consciência metalinguística também me parece uma fraude. No caso deste livro, era inevitável, pois ele explora uma tradição tão antiga quanto a própria literatura ou as religiões dualistas, as histórias de sósias ou duplos que culminaram na comédia de erros.Aliás, essa relação íntima entre a literatura e a realidade mais imediata de uma forma geral não pode significar que a literatura jamais se livra do poder?Tenho minhas dúvidas. A literatura deve ser um espelho que reflita a realidade distorcida como fazem aqueles espelhos de parques de diversão. É um outro princípio, no oposto da contradição que mostra que a literatura e a vida não são partes de uma só coisa. Como disse Bataille, a literatura ou é tudo ou não é nada.O mal pode ser um aliado da literatura?Parte da literatura que interessa é uma investigação sobre o mal. Veja a importância do mal na obra de Coetzee, Sebald e Bolaño, por exemplo. As grandes narrativas são feitas daquilo que a sociedade proíbe, dos crimes que a lei persegue, mas que são parte da paixão humana. A literatura é, nesse sentido, o lugar do perigo e da expiação.Os dois irmãos que parecem faces de uma mesma moeda. São personagens, digamos, novos em sua literatura. Como foi o processo de construção da dicotomia entre eles?A ideia era fazer com que os personagens convivessem alguns dias a mais com os leitores, daí a extensão do livro. Deu bastante trabalho, escrever romances requer dedicação. Os gêmeos me vieram à cabeça numa conversa com um amigo que me contava dos conflitos que tinha com o irmão caçula que se tornara drag queen. De alguma forma, a história de Wilson e de William busca resgatar o amor perdido entre esses dois irmãos reais.

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