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Sesc exibe versão mineira de peça de Brecht

O Grupo Galpão, com sua vocação para a leveza, tem atuação brilhante em Um Homem É um Homem, montagem da peça de Bertolt Brecht

Por Agencia Estado
Atualização:

Encerrada a contabilidade do século 20, coube a Bertolt Brecht a distinção de dramaturgo mais influente. Sua obra e em igual medida a teoria teatral inspiraram dramaturgos, estudiosos das técnicas teatrais e outros teóricos que procuram dar seguimento ao teatro épico brechtiano. Toda essa azáfama intelectual e artística em torno desse esplêndido dramaturgo terminou por sacralizar o autor. Não é incomum que espetáculos criados sob a luz de suas sugestões teóricas ou a partir de suas peças sejam impregnados de um respeito que beira o fundamentalismo. No caso das peças, a seriedade se justifica pela temática. São textos em que, sem exceção, se exibem modos de exploração do homem pelo homem. Não vivemos no melhor dos mundos e o assunto é, sem dúvida, grave. Quanto aos espetáculos, a exegese minuciosa das práticas do encenador Brecht leva muita gente a execuções ao pé da letra com resultados estranhos, calcados no teatro alemão dos anos 30 do século passado. Desses perigos está livre a versão mineira de Um Homem É um Homem. A vocação do Grupo Galpão é para a leveza e é essa marca do grupo que se sobrepõem a todos os outros elementos da encenação. Operando cortes, reforçando analogias e atualizando referências históricas o espetáculo dirigido por Paulo José faz pender a balança para a face solar do teatro brechtiano. O que pode ser simplificado e atualizado sofre as intervenções necessárias para a obra de um autor que valoriza imensamente a clareza. Galy Gay, o paupérrimo estivador oriental que protagoniza a peça cumpre sua trajetória exemplar de ser metamorfoseado em soldado com uma mescla de inocência e calculismo. As pequenas vantagens prometidas pela soldadesca o seduzem e a composição de Antonio Edson mesclando laivos de astúcia à ingenuidade de um homem habituado à servidão sinaliza a orientação do espetáculo. Parente do caipira do nosso anedotário rural, a languidez que o intérprete atribui à personagem é já um comentário feito à relativa inocência do "herói socialmente negativo". Como cidadão comum apanhado na rede de um exército invasor, Galy Gay transforma-se em outro homem, de invadido passa a invasor, de civil a militar, de marido que vai buscar peixe a autômato que não reconhece a mulher ou o lugar de onde partiu. Neste espetáculo a personagem brechtiana escapa da vitimização graças ao estilo, ou seja, pelo caminho da opção estética. Quem se transforma em outra coisa sob o influxo dos acontecimentos é um homem que demonstra, em primeiro plano, a maleabilidade para se adaptar. Quer em benefício próprio, quer em sinal de aquiescência à conformação da sociedade que o exército invasor representa na peça, há níveis de colaboração em paralelismo com o exercício da força. Do mesmo modo, todos os episódios em que se definem as etapas de transformação do trabalhador em soldado são animados por variações estilísticas em que as formas são nítidas, engraçadas e a uma distância decorosa do grotesco. Também isso não é um acaso. O grotesco é uma categoria estética que o teatro alemão domina com maestria e a nossa graça (e talvez a graça mineira) se afirma por meio da velocidade e da malícia dos subentendidos. Até o pesado Sargento Fairchild ganha um toque de patetismo nesta concepção. É um elenco brilhante no que diz respeito a esses detalhes inventivos de composição que fazem rir e são, ao mesmo tempo, significativos. No capítulo das correspondências históricas até o mais burrinho dos espectadores saberá que o exército colonial a que esta peça se refere originalmente (foi escrita no final dos anos vinte do século passado) não difere em objetivos e moral da força de ocupação que, neste momento, assola o Iraque. Não é necessário fazer esforço nesse sentido e, por essa razão, na visualidade, na música e no estilo de composição das personagens mesclam-se épocas, materiais, linguagens e formas orientais e ocidentais. O que importa é mostrar não uma guerra, mas como esta guerra de conquista, a de hoje, forja seus guerreiros e ganha força. Para tanto é preciso mostrar militares pouco canônicos. Arruaceiros e covardes, tal como foram construídos por Brecht, os soldados deste espetáculo tem também uma espécie de ginga, um traço de falsa familiaridade que os torna semelhantes aos "soldados" de fancaria do tráfico. A julgar pelo repertório que apresentou até agora nos palcos paulistanos, o Grupo Galpão tem inscrito no seu projeto artístico o diálogo com grandes dramaturgos. Trabalhando com Shakespeare ou com Molière, o filtro narrativo do grupo é sempre evidente, como um moldura que permite reconhecer a um só tempo os leitores e a obra lida. Nesse sentido, Brecht é quase uma inclinação natural. A recriação de uma personalidade segundo o viés da contingência histórica é uma brincadeira paródica que os artistas do grupo têm realizado por prazer nos seus vários exercícios de metateatro. Estão habituados a nos fazer pensar sem franzir a nossa testa. Um Homem É um Homem. 90 min. Livre. Teatro Sesc Anchieta(320 lug.). R. Dr. Vila Nova, 245, tel. 3234-3000. 5.ª a sáb., 21 h; dom., 19 h. R$ 30. Até 23/4. Recomendada

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