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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Serões fagueiros

“Beethoven era tão surdo que, durante a vida inteira, pensou estar se dedicando à pintura.”

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Atualização:

Nas noites de terça-feira, Ivan Lessa sempre ia jantar lá em casa depois do expediente vespertino. Jantados, voltávamos para a redação para duas tarefas: fechar a edição e despachar os leiautes para a gráfica, sob a batuta de Jaguar. Nas páginas já montadas com cola Pritt por Haroldo Ziegler (estamos nos anos 1970), eu pegava da peninha e do frasco de nanquim de Jaguar e, às gargalhadas, ia grafitando nas margens da edição toda sorte de insanidades que nos passavam pela cabeça, inclusos os lacônicos, quase beckettianos, diálogos trocados entre as aranhas Hélio e Jacy, personagens também criados, como o rato Sig, símbolo do jornal, por Jaguar e Ivan. 

Era uma pândega “zorrar a edição”, que era como definíamos o vandalismo gráfico por nós cometido Foto: Reprodução

Desenhar aranhinhas é mole, mas nem isso Ivan, escravizado às teclas da máquina de escrever e meio disléxico, conseguia fazer à mão.  Era uma pândega “zorrar a edição”, que era como definíamos o vandalismo gráfico por nós cometido. A menos de três metros de distância, vigiando e palpitando na mise en page do Haroldo, ora e vez rabiscando um repentino calunguinha para enfiar em algum canto da edição, e a bebericar uma dose caubói de Passport num recipiente pouco maior do que o tinteiro de nanquim, Jaguar ou ria como o Dr. Silvana ou apenas soltava um muxoxo, acoplado a um comentário do tipo “vocês não têm jeito mesmo”.  Jaguar foi o primeiro a intrigar-se com os “I.A.L.” (sempre seguidos de um porcentual), que rabiscávamos ao lado dos textos, mas o primeiro a indagar “que merda é essa?!” foi Paulo Francis, que, além de rabugento, não gostava de admitir que topara com algo inalcançável por sua onisciência.  Vivendo em Nova York e desligado de futebol, Francis jamais adivinharia que I.A.L. significava Índice de Aproveitamento na Loteca (cognome popular da Loteria Esportiva). Escusado dizer que os índices de Francis, arbitrariamente estimados pela gente, eram inferiores ao PIB do Haiti.  Gozar Francis nunca deixou de ser um dos passatempos prediletos de Ivan. Os dois viviam às turras, mas se amavam. Ivan só o chamava de “Francês”.  Encontrei, nos meus guardados, um punhado de frases com as quais zorrávamos o Pasquim, nos fagueiros serões das terças-feiras; algumas de minha lavra, outras do Ivan (bem ao estilo Gip-Gip Nheco-Nheco), e ainda outras de origem obscura. Não esta aqui, por exemplo: “Deus é um cômico cuja plateia tem medo de rir”, do jornalista e humorista H.L. Mencken. Nem esta, de inspiração grouchomarxista, que pincei do escritor mexicano Carlos Fuentes: “O maior inconveniente de ser fuzilado é acordar cedo”.  A preguiça me impediu de checar quais foram publicadas. Mas isso agora pouco importa.  Além de aforismos e desaforismos, inventávamos fake news, tipo “A baleia Moby Dick ressuscitará no próximo sábado no piscinão de Ramos – pernetas e tatuados pagam meia”, alertas absurdos, quase bretonianos (“Esta página se incendiará daqui a 5 minutos”), conselhos úteis (“Só passe a acreditar numa coisa depois que ela for desmentida oficialmente”; “Pra sua segurança, deixe sempre pra cortar os pulsos nas vizinhanças do Instituto de Hematologia”) e regras de etiqueta (“Nunca esqueça de beijar a mão da viúva do pedestre que você atropelar”; “Guarde os detalhes de sua colonoscopia para depois da sobremesa”; “Surpreenda seus convidados ocultando sob o guardanapo um poema de péssima qualidade”. E agora, um punhado do punhado que guardei: “Se você der uma punhalada no peito de um poeta concreto, ele morrerá sem fazer uma rima.” “Hegel não acreditava no rádio de pilha.” “Beethoven era tão surdo que, durante a vida inteira, pensou estar se dedicando à pintura.” “Oswaldo Cruz não descobriu a febre amarela. Ela era alaranjada.” “Os cães ateus não acreditam na existência do homem.” “Não se pode ouvir Bach e torcer pelo Vasco ao mesmo tempo.” “A guerra do Paraguai realmente existiu e chamava-se Hermínia.” “O lugar-comum é uma verdade cansada.” “Para o misantropo, um desafeto a mais é apenas um presente de aniversário a menos.” “Faça seus pedidos no balcão com o nome de Godot, e vá embora.” “Muitos escritores bebem à beça. Na Alemanha, são os leitores.” “Zaratustra era tão chato que, quando tentou falar com um desconhecido no ônibus, o cara mudou rapidinho de assento.” É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE ‘ESSE MUNDO É UM PANDEIRO’, ENTRE OUTROS

Opinião por Sérgio Augusto
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