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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Seria possível medir o humano?

84 anos não é qualquer coisa se você imaginar que sua vida comporta 7 meninos de 12 anos; 4 rapazes de 21 anos e 2 homens de 42 anos

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Atualização:

Para Fred e Joana Xavier  No mês passado, um grande amigo – vamos chamá-lo de Ricardo Rico – aniversariou. Chegou sem planejar aos 84 anos. A festa, organizada por sua mulher, filhos e netos, foi grande: rica como o Ricardo, que festejava feliz soprando suas oitenta e quatro velinhas de cera, tal como, de uma baforada, Deus criou a vida num Adão feito de barro. 

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Passado o preceito ritual em que fomos obrigados a provar, como inocentes canibais, o bolo que fazia um açucarado papel de Ricardo Rico, fomos apreciar o uísque no canto dos velhos. Finalmente livres, Ricardo ponderou:

– Quando vi a multidão de velas, voltei no tempo. Cada vela sinalizava um ano passado pelo meu coração e pela minha alma. Lembrei-me do momento em que tudo era uma “primeira vez” quando agora eu sei que não tenho mais aquelas doces e quase sempre angustiantes inocências...

– Estamos mais do que inaugurados!. Disse tomando justo gole do meu copo. Meu tio Silvio dizia, lembrei, olhando para o meu amado aniversariante: é preciso beber muito para aguentar essa vida...

– De fato, mas a bebida a qual ele se referia não era exclusivamente o mero álcool. Era o conforto que cada qual teria que achar no palheiro que conforma esse mundo e que ele bem chamava, invocando Nossa Senhora, de “vale de lágrimas”. Você, por exemplo – continuou Ricardo – achou muito na Literatura. Eu encontrei na vida prática quando descobri a Engenharia e a possibilidade de tudo medir, pesar e contar como estamos fazendo agora com essa ritualização paralisadora da minha vida. Minha humilde vida que um dia vai se esvanecer como a fumacinha dessas velas...

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– Seria possível medir uma pessoa? Provoquei... 

– Roberto, quando eu terminei o meu doutoramento, eu achava que sim, que até mesmo a vida mental e social era quantificável. Aliás, é o que fazem os economistas e outros estudiosos da sociedade quando usam o tempo como medida de progresso e petrificam a humanidade em idades. Da Pedra da Era Atômica, passando por muitas revoluções: a agrícola, a dos metais, a urbana e, hoje, a digital – eles escondem a das inquisições, das guerras e dos genocídios... Aliás, já tem gente vendo a pandemia como uma outra transformação. 

– Felizmente sabemos como o elo entre um suposto atraso e um progresso é complexo, pois cada avanço é sempre relativo, resolvendo e paradoxalmente provocando problemas novos. Como se dizia antigamente, “o inesperado sempre acontece” e aí estamos às voltas com um vírus. 

– E com a velhice – retruquei sorrindo – somos gratos, mas há preços. Como seria complicado quantificar a vida longa já que eu ainda me surpreendo como um menino tanto quanto como um calejado viajante diante da ignorância que floreia essa nossa polarizada e rasa vida digital, ironicamente feita de fake news – esse novo nome para o ressentimento, o ódio e a intolerância...

– Incrível. Veja o que recebi, disse Ricardo, passando para mim uma amorosa carta de parabéns disfarçada num impresso que havia recebido de um grande matemático, seu velho amigo.

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Eis o que li: 

“Querido amigo, Este ano, queremos lhe desejar feliz aniversário, sugerindo umas alternativas para os seus 84 anos que são 7 vezes 12, ou quatro vezes 21 ou, ainda, 2 vezes 42 anos de vida. Não é qualquer coisa se você imaginar que sua vida comporta 7 meninos de 12 anos; 4 rapazes de 21 anos e 2 homens de 42 anos. Do alto dos seus oitenta e quatro faça a sua melhor escolha…” ______ Li a carta de felicitações com o apanhado numérico da vida do meu amigo. Imediatamente verifiquei como uma mudança de perspectiva ou de tradução transformava um simples número, criando uma outra narrativa. Um drama que permitia enxergar, talvez com mais precisão, generosidade e grandeza, o que também haveria num homem de 84 anos! O também é um adendo impossível porque aquela conta falava de meninos, rapazes e homens. Não quantificava os tempos de ternura e paixão; nem os temporais de insegurança, dor, raiva, inveja, decepção e vontade de morrer. Ou os imensos instantes de paz e harmonia com aquilo que chamamos sem saber, mas sabendo, de amor. Amor contido no gozo e na honradez, na tenacidade, na preguiça, e na perseverança e na coragem diante da vida. E foi assim que eu abracei esse meu irmão que é uma pessoa, mas – como toda pessoa – continha dentro dela tanta gente... 

Opinião por Roberto DaMatta
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