“Personagens complexas são o sal da ficção”, disse Lucrécia, na padaria. “Sem elas, o livro fica insosso e perde interesse. Gosto até mesmo das personagens secundárias...”
Citou duas ou três personagens inspiradas em pessoas, e acrescentou que a imaginação transformava essas figuras fictícias em seres mais complicados do que nós.
Concordei, com uma ressalva: algumas pessoas mudam muito pouco, e sempre para pior. E me lembrei do que dizia meu saudoso tio Adam: “Há seres irrecuperáveis. Gente que não inspira nem sequer uma personagem rasa”.
“Você conheceu pessoas assim?”, riu Lucrécia. “Seres irrecuperáveis?”
Disse que estavam por toda parte, no presente e no passado. E dei um exemplo concreto: o Jamebo da minha juventude.
“Jamebo... É um apelido, nome ou sobrenome?”
Expliquei que era uma contração do nome com o sobrenome: ambos definiam um sujeito execrável. Aliás, tão execrável que o apelido dele era Jamebão.
Lucrécia pediu meia dúzia de pães, sentou-se num banco da padaria quase deserta e escutou.
Conheci o Jamebão quando frequentava com meu tio Adam um bar da minha cidade. Aquele sujeito me impressionou... O rosto macilento parecia uma máscara com fissuras. O olhar e a risada insinuavam desdém; e só abria a boca para a infâmia. Quando estava inspirado, trocava a infâmia por um punhado de vulgaridades. Ele parecia desconhecer a serenidade e a reflexão, e tinha o incrível, quase sub-humano poder de simplificar tudo. De início, meu tio percebeu no Jamebão alguma afinidade com o capitão Pistol. “Quem é esse capitão?”
“Uma personagem secundária de Shakespeare, Lucrécia. Mas tio Adam mudou de ideia. Disse que o capitão Pistol ao menos tinha humour, mas o Jamebão não tinha nada, não servia para personagem.”
Contei que tinha conhecido o Jamebão no simpático bar do Pina, famoso naquela época por reunir intelectuais, jornalistas, artistas e poetas; o bar ficava bem em frente ao quartel da PM, na praça Balbi. Dois militares de bronze, em pose hierática, eram sentinelas do edifício antigo, de estilo neoclássico. O par de bronze ainda está lá, cravado num pedestal de concreto.
Às vezes, o Jamebão dava as caras nas tardes de sábado. Prestava continência às estátuas e rumava com passos de marcha ao bar do Pina. Vários fregueses se apressavam em pagar a conta. Quem não conhecia o Jamebão, tornava-se testemunha involuntária de um vexame.
O cara contava piadas horríveis com uma fala atrapalhada, e fazia gestos não menos horríveis. Os passeantes paravam perto do Pina e riam. Não sei se riam das piadas ou dos gestos. Talvez da combinação de ambos. Era uma encenação perfeita de uma arrogância peculiar. E o mais lamentável é que não demonstrava um pingo de vergonha de sua profunda, infinita ignorância. Com o passar do tempo, eu esperava que ele ia mudar. Mas não. Era repetitivo ad nauseum. O que variava nele era o grau de agressividade na voz e nos gestos.
“Ninguém peitava esse imbecil?”
Certa vez, alguém disse pra ele: “Conta outra, rapaz, tu não entendes nada disso”. O Jamebão, de dedo em riste, cuspiu palavrões com uma voz estúrdia, desorbitada. Não economizava blasfêmias, e escarnecia dos que o contrariavam. No entanto, considerava-se “cristão até o tutano”.
Tio Adam dizia que alguns rebanhos são atraídos por um tirano sem pensamento claro; às vezes, sem pensamento algum. Meu tio via na atitude do Jamebão uma tirania difusa, um desregramento desbragado, que negava qualquer ato razoável. Ainda me lembro do olhar aflito e das palavras de Adam: “O grande perigo é quando um desses mandões achavascados assumem qualquer tipo de comando”.
Três da tarde, a padaria ia fechar. Lucrécia pagou os pães e comentou:
“É verdade, esse Jamebão é irrecuperável. Deve ter feito muito estrago na tua cidade. Não serve mesmo para personagem, nem para a mais rasa. Mas pode servir para uma crônica”.
Ela seguiu com seu saco de pães para a rua dos Macunis. E eu, de mãos vazias, à reclusão numa casinha na Sumidouro.