Sem ressentimentos

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Por Luis Fernando Verissimo
Atualização:

A melhor piada sobre a paixão dos franceses pelo Woody Allen foi feita pelo próprio Woody Allen. Naquele filme em que ele é um diretor que fica cego no meio das filmagens, continua a filmar mesmo sem enxergar nada e, claro, faz um filme que ninguém entende - a não ser os franceses, que descobrem significados ocultos no caos. O filme termina com o diretor, ridicularizado pela crítica americana, embarcando para a França, onde será homenageado pela sua obra-prima.Depois desta estocada satírica era de se esperar que os franceses ficassem magoados com Woody. Mas a paixão continua, sem ressentimentos. Ele foi convidado a apresentar seu último filme na inauguração do Festival de Cannes, fora de concurso, e os franceses o adoraram. O filme, Meia-Noite em Paris é uma louvação a tudo que Paris representou para os americanos de uma certa época, a "geração perdida" de Hemingway, Fitzgerald e etc. que fizeram da cidade o palco da sua afirmação artística e pessoal. Allen já tinha homenageado outra Paris, a que Gene Kelly e Fred Astaire haviam usado como cenário das suas fantasias musicais, no filme Everybody Says I Love You, culminando com uma dança à beira do Sena em que Woody e Goldie Hawn parodiavam Gene Kelly e Leslie Caron em Um americano em Paris e resumia todo o romantismo que a cidade inspirava.Sem querer estragar o filme para quem ainda não viu, em Meia-Noite em Paris Woody acompanha seu personagem principal numa viagem ao passado, à Paris pré-Segunda Guerra Mundial, em que ele encontra e convive com seus ídolos intelectuais, não apenas os americanos que giravam em torno de Gertrude Stein, mas gente como Picasso, Buñuel e até Salvador Dalí, numa ótima ponta de Adrien Brody. O visitante do presente chega a interferir na vida dessas personalidades (acalmando a Zelda Fitzgerald com um Valium, por exemplo).E como na época de ouro de qualquer lugar sempre se evoca uma época de ouro que houve antes, o personagem viaja para mais longe no tempo e conhece Toulouse-Lautrec, Gauguin e outros -, que também falam com saudade de uma época de ouro que passou. Ele acaba voltando para o presente e à Paris de Carla Bruni, e comenta que o problema com a nostalgia de outros tempos é que as pessoas nem sempre se dão conta do que era a vida antes de existir, por exemplo, a anestesia. Mas o que Woody Allen quis fazer foi outra declaração de amor para eliminar todos os possíveis mal-entendidos. E dizer que em Paris todas as épocas são de ouro. Algumas só brilham mais do que outras.(A melhor piada do filme, que não passa de um simpático conto de fadas: um detetive contratado para seguir o personagem na sua fuga ao passado se perde no tempo e se vê no século 18, dentro do palácio de um dos Luises e sendo perseguido pela guarda real.)

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