Sem o irmão Ethan, Joel Coen faz seu ‘Macbeth’

Com sua mulher, Frances McDormand, e Denzel Washington, diretor traz para as telas a tragédia shakespeariana

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Por Mariane Morisawa
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Uma tragédia shakespeariana não parece exatamente um material de interesse para um diretor como Joel Coen. Mas, depois de ver a mulher, Frances McDormand, fazendo Lady Macbeth no palco, ele percebeu que, com a ajuda de uma câmera, poderia explorar a vastidão psicológica de uma das maiores peças do dramaturgo inglês. Assim surgiu A Tragédia de Macbeth, que estreia nesta sexta, 14, no Apple TV+ e é o primeiro filme de Joel sem seu irmão mais novo, Ethan. Uma atriz com o talento e a personalidade de McDormand exigia um ator à altura. Para marido e mulher, não havia outro nome que não Denzel Washington, vencedor de dois Oscars. Para a atriz, cada geração tem um ator que nasce para interpretar Macbeth, e Washington é o desta. “Denzel entendeu imediatamente a dicotomia do personagem”, explicou Joel Coen em um evento em Nova York. “Na peça, ele é simpático no início, mas na verdade Macbeth também é um gângster. É um cara conhecido por ser um grande guerreiro. Ser essas duas coisas ao mesmo tempo é fundamental para o papel, e Denzel é ótimo nisso.” 

Cena da adaptação de Macbeth, a tragédia escrita por William Shakespeare Foto: Apple TV

Macbeth fala sobre um lorde e general admirado que vê sua esperança de assumir o trono se dissipar quando o rei Duncan (no filme, interpretado por Brendan Gleeson) nomeia o príncipe Malcolm (Harry Melling) como sucessor. Convencido por um trio de bruxas (Kathryn Hunter) de que está destinado a ser o próximo rei e encorajado pela mulher, Lady Macbeth (McDormand), ele planeja tomar o poder por quaisquer meios necessários, incluindo assassinatos múltiplos de homens, mulheres e crianças. Denzel Washington conhecia e admirava a obra de William Shakespeare desde o início de sua carreira – dois de seus primeiros trabalhos foram Otelo e Coriolano, no teatro. Curiosamente, ele disse em entrevista com a participação do Estadão, por videoconferência, que nunca tinha lido nem visto nenhuma montagem ou versão cinematográfica de Macbeth.  Ele sabe que, não muito tempo atrás, jamais teria sido cogitado para fazer este papel em um filme. “Os projetos que, sendo um homem negro, eu tenho chance de fazer nesta indústria hoje, eu não podia quando eu comecei minha carreira. Eu talvez conseguisse ser o amigo do Macbeth, mas ninguém convidava alguém parecido comigo para interpretar Macbeth no cinema”, disse. “Então, a luta sempre existiu, mas certamente as coisas mudaram.” Seu único Shakespeare no cinema tinha sido uma versão de Muito Barulho por Nada dirigida por Kenneth Branagh em 1993.

Cena da adptação de Macbeth, a tragédia escrita por William Shakespeare Foto: Apple TV

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Washington não é o único negro no elenco. Corey Hawkins (Em um Bairro de Nova York) interpreta Macduff, que aspira ser como Macbeth, mas é uma vítima da ambição desmedida do personagem principal. “Eu estava mais preocupado em não machucar o Denzel na nossa cena de luta, mas acho que não escapou a nenhum dos dois o impacto de ter esses dois homens negros, representantes da bondade e do outro lado disso”, disse.  Coen, Frances e Washington não estavam interessados nos paralelos políticos possíveis de desenhar a partir de Macbeth. “Eu não penso nessas coisas ao fazer um filme, deixo para o espectador. Para mim, é a história de um homem que vendeu a alma ao diabo voluntariamente”, afirmou Washington. Para Alex Hassell, um experiente ator shakespeariano, que faz Ross no filme, “Joel escavou os temas da peça – ambição, desejo, fracasso, ambiguidade moral, manipulação, poder, cobiça, a lista é longa –, em vez de empilhar seus próprios interesses”. “Para mim, é um filme sobre um casamento”, disse McDormand no evento em Nova York. No caso, um relacionamento longo como o da atriz com o diretor, que já dura 37 anos. Ou de Washington com Pauletta Pearson Washington, casados desde 1983. Mas, ao contrário de Lady Macbeth, que incentiva o marido em sua busca desenfreada pelo poder, o ator credita à mulher mantê-lo com os pés no chão. “O segredo do controle do ego é um casamento longo”, disse ele, abrindo aquele sorrisão de astro de cinema. Fazer dos Macbeth um casal mais velho, na casa dos 60 anos – não aparentes, diga-se –, trouxe um sentido de urgência à obra. “O tempo está passando, os dois foram pacientes, esperaram, mas agora é sua vez. Quando ela lhes é negada, os dois acham que precisam agir, porque não vão estar por aqui por muito tempo”, disse Washington. Essa ação acaba sendo sua ruína. E é aí que dá para entender a vontade de Joel Coen de dirigir A Tragédia de Macbeth. Macbeth, afinal, fala de crime e castigo, um dos temas caros à obra do diretor. “No fim, Macbeth é super Coen, porque é meio ‘aqui se faz, aqui se paga’”, disse Corey Hawkins.

Curiosamente, A Tragédia de Macbeth marca o fim – ou pelo menos um tempo – na parceria cinematográfica de Joel com seu irmão mais novo, Ethan, com quem sempre trabalhou, desde os anos 1970. Joel não descarta assinar novamente um projeto com o irmão, que andou se dizendo desinteressado do cinema. Mas acredita que esta obra não apeteceria a Ethan.  Visualmente, A Tragédia de Macbeth lembra muito pouco os filmes assinados pelos irmãos Coen. Não por causa do uso do preto e branco, com que eles trabalharam em O Homem que Não Estava Lá, por exemplo. Mas o longa de Joel Coen aposta no minimalismo e na atemporalidade, construindo cenários que evocam o expressionismo alemão e uma atmosfera de sonho. “A ambição era manter a sensação de ser uma peça”, disse o diretor no evento em Nova York.  Claro que ele sabia se tratar de um filme. O cineasta incorporou os solilóquios de Macbeth em diálogos. Há muitas cenas bem abertas, mas vários closes. “O cineasta fala para o público o que ele vai ver, por quanto tempo”, explicou Coen. “Mas queria preservar a noção de ser uma adaptação de uma peça para o cinema.”A Tragédia de Macbeth é o segundo trabalho seguido do diretor a estrear majoritariamente no streaming. “Todos os diretores querem seus filmes nas maiores telas. Mas é libertador saber que o streaming traz as obras para públicos mais amplos. Eu aceito tudo. Todos têm seu lugar.

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