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Sedução e êxtase

Tristão e Isolda, em Manaus, prova ser uma montagem para arrebatar todo o País

Por João Marcos Coelho
Atualização:

A 15.ª edição do Festival Amazonas de Ópera teve anteontem, no sempre emocionante Teatro Amazonas, seu clímax: o público assistiu à estreia de nossa maior soprano, Eliane Coelho, no papel mais estafante e complexo da história da ópera.Pela primeira vez, a única "diva" brasileira atual encarnou Isolda, a heroína de Richard Wagner que conduz a trama da ópera que lhe deve o nome. Tristão, o guerreiro que a leva de "presente" para o tio Rei Marke e participa do título da ópera, mas está em segundo plano, com certeza.Daí o acerto da encenação de André Heller-Lopes: concentrou-se em Isolda. Das 4,5 horas da ópera, Eliane atua por 3,5 horas (a primeira hora e meia sem sair de cena). O papel exige uma voz de soprano dramático sutil e ao mesmo tempo ampla e poderosa para sempre pairar acima da orquestra. Luiz Fernando Malheiro e seus músicos enfrentaram com êxito uma partitura difícil, que jamais os deixa se acomodarem. Afinal, trata-se de uma história em que a música é o mote principal.Explica-se: Wagner acabara de descobrir o filósofo Schopenhauer, que coloca a música como soberana de todas as artes, a única imaterial. Wagner, que curtia um tórrido caso de amor com Mathilde Wesendonck, mulher de seu mecenas, transportou seu "caso" seduzido pelo vértice amor-morte. O segundo ato é uma enorme cena de amor. Um crítico, segundo Jorge Coli no texto do programa oficial, afirmou que este "é o mais longo orgasmo da história". Pudera, o dueto empilha 90 minutos de êxtases. Já Virgil Thompson, o maior crítico norte-americano da primeira metade do século 20, contabilizou "sete orgasmos". Heller literalmente "regou" essa orgia com milhares de pétalas de rosas que se confundiam com o vestido vermelhíssimo de Isolda. Foi o momento mais belo, plasticamente falando, de uma montagem sem erros.A cena mais famosa é a final. A "liebestod", ou morte de amor, de Isolda exige qualidades vocais difíceis de se conciliar: uma projeção sem falha para dominar ondas orquestrais cada vez mais expansivas, mas também serenidade absoluta e doçura supraterrestre, chegando a um agudo que flutua em pianíssimo. São várias as grandes Isoldas da história, como Kirsten Flagstadt e Birgit Nilsson. Hoje, Waltraud Meier e Nina Stemme dividem as glórias internacionalmente; mas a elas devemos juntar, a partir de agora, Eliane Coelho.Pílulas finais sobre o elenco, homogêneo e num nível excelente de performance: 1) o Tristão do tenor John Charles Pierce é correto e privilegia as porções nos registros médio e grave (seus agudos não são tão bonitos, mas corretos sempre); 2) a Brangane de Andreia Souza foi estupenda, com belo timbre e uma firmeza impressionante; 3) Leonardo Neiva fez um Kurvenal notável, com direito a um ótimo final no terceiro ato; o rei Marke de Kevin Maynor trouxe ao papel um timbre de baixo soft, macio, com excelente participação na parte final do segundo ato e no terceiro; 3) a Orquestra Amazonas está a um passo de conseguir performances de alto nível. Ainda há esbarrões aqui e ali, desencontros/desafinações entre as cordas (poucas, bem poucas) - senões minúsculos numa empreitada tão formidável.P.S.: Não entendo como uma montagem tão bem-sucedida como essa se reduz a duas récitas. Esse Tristão e Isolda teria que viajar pelo Brasil inteiro para mostrar um padrão de qualidade operístico inédito em nosso país.

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