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Saviano troca os mafiosos pela arte

No livro A Beleza e o Inferno, seu foco é o poder de transformação da cultura

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Para o escritor argelino Albert Camus (1913-1960), a arte não era algo que pudesse ser celebrado na solidão, mas "um meio de comover os homens". Para tanto, o escritor, segundo Camus, deveria aceitar dois encargos: estar a serviço da verdade e defender a liberdade. Essas palavras, pronunciadas em 1957, três anos antes de Camus morrer num acidente de carro, ficaram marcadas na memória do escritor italiano Roberto Saviano, de 31 anos, autor do polêmico livro Gomorra, sobre as atividades dos mafiosos da Camorra, que vendeu mais de 2 milhões de exemplares na Itália e foi traduzido em 43 países. E foi pensando em Camus que ele batizou seu novo livro de A Beleza e o Inferno, laureado em dezembro na quarta edição do European Book Prize, prêmio dividido com o finlandês Sofi Oksanen por sua novela Expurgo. Saviano extraiu as duas palavras, beleza e inferno, da história de um subtenente alemão preso na Sibéria, contada por Camus em O Homem Revoltado, que, passando frio e fome, construiu um piano de madeira, silencioso, cuja música só ele ouvia.É mais ou menos o que acontece com Saviano desde que Gomorra virou best-seller, foi transformado em filme de sucesso e empurrou seu autor para o inferno da clandestinidade, ameaçado de morte pela organização cujo crime denunciou, a Camorra napolitana, que hoje reúne mais de 100 "famílias" com 7 mil integrantes e já cruzou há muito a fronteira da Itália. A diferença entre Saviano e o personagem de Camus é que o jornalista e escritor não fabricou um piano, mas um livro silencioso para dividir com os leitores. Desta vez, os mafiosos ficaram em segundo plano, embora Saviano dedique um capítulo inteiro ao perfil de Joe Pistone, o agente do FBI infiltrado na máfia de Nova York, que inspirou o filme Donnie Brasco, feito pelo diretor Mike Newell há 14 anos. A conversa com Pistone é um exemplo de jornalismo investigativo e foi publicada há dois anos no L"Espresso. Quase todo o material do livro, aliás, não é inédito, mas isso não tira a força de A Beleza e o Inferno.Tributo. Em textos emocionados, Saviano presta tributo a outras pessoas que lutaram pela liberdade e a verdade, morrendo por ambas. O exemplo extremo é o da jornalista russa Anna Politkovskaia (1958-2006), assassinada em Moscou por suas denúncias contra as atrocidades praticadas pelos militares russos na guerra da Chechênia. Saviano, ao escrever há dois anos o prefácio da edição italiana do livro em que a jornalista relata esses abusos (Chechênia, a Desonra Russa, 2003), se viu refletido no drama de Politkovskaia. Ela teve sua vida devassada, sobreviveu a um envenenamento, foi alvo de chantagem de oligarcas produtores de níquel e encontrada morta no elevador de seu prédio por não ceder aos poderosos - um deles preparou um dossiê difamatório sobre ela, que preferiu morrer a ser moralmente linchada. Saviano, mesmo escrevendo seus textos em quartos de hotéis e acompanhado permanentemente por seguranças, recebeu cartas ameaçadoras de advogados de mafiosos que acenavam com uma campanha midiática de difamação.O motivo, para quem não leu Gomorra, é a denúncia do crime transnacional dos camorristas, que passa pelo porto de Nápoles e não se restringe ao tráfico de drogas ou contrabando de mercadorias, mas às atividades de um cartel mafioso com braços até no Brasil. A Beleza e o Inferno começa como Gomorra, relatando no capítulo inaugural as chacinas nos territórios corrompidos pela Camorra. Saviano dá nome e sobrenome dos mandantes dos crimes e dos mafiosos foragidos.Esse é o lado mais conhecido de Saviano. O menos conhecido é o de crítico literário e jornalista cultural. No segundo capítulo do livro, ele presta tributo à cantora africana Miriam Makeba, cujos discos foram banidos pelo governo sul-africano nos anos 1960. Ela passou anos exilada. Ao tomar conhecimento da perseguição de Saviano, Makeba prestou solidariedade ao escritor, cantando num show realizado em Castel Volturno, em 9 de novembro de 2008. Foi o último de sua vida. Sofreu um ataque cardíaco no palco e morreu de madrugada, no hospital daquela comuna da Campania. "Morreu perto, perto de sua gente, entre os africanos da diáspora", completa Saviano, referindo-se aos africanos marginalizados que ocupam as casas abandonadas de Villagio Coppola, perto de Castel Volturno, hoje chamado de Soweto da Itália.Emoção. Outro encontro emocionante do escritor foi com "o menor campeão de futebol vivo", Lionel Messi, no vestiário do Camp Nou de Barcelona. Messi foi eleito pela Fifa o melhor jogador de futebol do mundo em 2009, desbancando Cristiano Ronaldo e Kaká. Saviano chama o argentino de "o menor" por causa do apelido, Pulga. No entanto, sua baixa estatura, como a de Maradona, não impediu Messi de marcar gol de cabeça. Mas poderia. Saviano conta a dramática história do jogador, que, aos 11 anos, teve um problema hormonal que afetou os ossos e seu crescimento. Saviano faz uma analogia poética de Messi com o zangão, que voa, a despeito de seu corpo ser desproporcional à envergadura das suas asas.A surpresa maior de A Beleza e o Inferno, no entanto, é a qualidade do texto do italiano como resenhista. Ele fala de escritores hoje pouco lidos, mas autores de obras-primas, como o escritor de língua alemã Uwe Johnson (1934-1984), tradutor de Melville. Johnson, que fugiu para Berlim Ocidental em 1959, é assumidamente um modelo para Saviano, particularmente pela tetralogia Jahrestage, espécie de épico proustiano em que a prosa autista de Johnson subverte as regras literárias para apresentar ao leitor personagens vivos como os do autor de Gomorra.

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