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Satyros visitam o teatro de Gil Vicente

Companhia encena em São Paulo Pranto de Maria Parda, que traz como personagem principal uma mendiga que não esmola comida, mas vinho

Por Agencia Estado
Atualização:

A piada é conhecida - um mendigo "mui sincero" pede uma esmola para comprar cachaça e o suposto doador responde - não dou, você vai gastar tudo em pão. Semelhante inversão do pensamento de senso comum é o ponto de partida de Gil Vicente (1465-1536) para a criação de Pranto de Maria Parda, um texto sobre uma mendiga que implora por vinho em vez de pão. Claro que o resultado vai muito além de uma piada. A partir desse mote, o "pai do teatro português" cria um belo texto sobre a dignidade humana que ganha agora versão teatral da companhia Os Satyros, com Soraya Aguillera como Maria Parda. Pranto de Maria Parda estréia amanhã no Teatro Sérgio Cardoso. Dizem que uma andarilha teria inspirado o autor a criar esse texto, o testamento/desabafo de uma mendiga durante a fome que se abateu sobre Portugal na grande seca de 1522. No quarto centenário de morte do autor, quando foi homenageado em Portugal, o texto subiu ao palco pela primeira vez. Desde então, passou a integrar o repertório de grandes atrizes, como a portuguesa Maria do Céu Guerra, que interpretou a personagem num espetáculo-solo no Festival de Teatro de Porto Alegre, há quatro anos. A companhia Os Satyros, dirigida por Rodolfo García Vázquez, já manteve uma sede em Portugal. E, curiosamente, tiveram em Maria do Céu Guerra uma espécie de madrinha nos primeiros tempos. "Fomos para Portugal como convidados do Festival do Porto, com Saló, Salomé, em 1992. Queríamos apresentar a peça também em Lisboa, mas estávamos encontrando dificuldades", lembra Vázquez. Foi quando pediram, e receberam, a preciosa intermediação de Maria do Céu. Acabaram ficando alguns anos em Portugal. Ainda assim, Rodolfo não chegou a ver a criação de Maria do Céu para Pranto de Maria Parda. "Sei que sua interpretação é deslumbrante." Mas é bem diferente a sua encenação. Em primeiro lugar, Pranto de Maria Parda na versão dos Satyros não é um solo e sim uma peça apresentada por uma trupe mambembe faminta. "Acho que o texto permite discutir a questão do artista. Há duas leituras possíveis. Ver Maria Parda simplesmente como uma excluída ou como alguém que tem sede de dignidade, de arte, de liberdade, de cultura", diz Rodolfo. Evidentemente, ele optou pela segunda leitura. "Mas o texto de Gil Vicente foi preservado. Na íntegra. Com rimas, versos, toda a sua beleza poética", avisa. O diretor ressalta a atualiadade do tema. "Principalmente neste momento em que Lula, ao ser eleito presidente, chama a atenção para a fome. Em 1522, Portugal descobre novos mundos. É um momento significativo na história desse movimento de globalização. Portugal é então uma grande potência. E, no entanto, as classes oprimidas nunca foram tão negligenciadas. Claro, as descobertas foram muito importantes", observa Rodolfo. "Da mesma forma, houve avanços significativos no governo FHC. Mas acho que se por um lado avançamos, por outro nossa consciência está mais flácida. Fechamos os olhos para a situação dos hospitais públicos e das pessoas abandonadas no meio da rua." Maria Parda é uma dessas pessoas desprezadas pelo sistema. Estaria nas estatísticas da exclusão social. Mas ela não pede pão. Quer vinho. Quer liberdade. Quer alegria. Quer dignidade. Tem múltiplas facetas. É grotesca. Escatológica. Patética. Solitária. Lutadora. Frágil. É, enfim, humana. Pranto de Maria Parda. De Gil Vicente. Direção Rodolfo García Vázquez. Duração: 70 minutos. De quinta a sábado, às 21 horas; domingo, às 19 horas. R$ 10,00. Teatro Sérgio Cardoso - Sala Marcenaria. Rua Rui Barbosa, 153, São Paulo, tel. 288-0136. Até 26/1.

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