Saramago questiona mídia e governo em novo livro

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Por Agencia Estado
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O próprio José Saramago previu que seu próximo livro, Ensaio sobre a Lucidez (Companhia das Letras, 328 páginas, R$ 39,50), que chega quinta-feira às livrarias do Brasil e Portugal, provocará "um escândalo dos diabos". O motivo é a forma como fala de um país em que os governantes discutem por ninharias e a imprensa tenta cativar leitores exibindo virtudes públicas que mascaram vícios privados. O livro detalha o desespero do governo de um país cujas eleições municipais resultam em mais de 80% de votos brancos, especialmente na capital. Chamados pejorativamente de "brancosos" esses eleitores acabam alvos de medidas drásticas, desde o estado de sítio que fecha as fronteiras da cidade até atentados terroristas armados pelo próprio governo, com a intenção de provocar pânico e justificar a retomada da legalidade. "Quis que a fábula fosse uma sátira, mas não pude evitar que fosse também uma tragédia", disse Saramago ao Estado, na seguinte entrevista, por e-mail. Depois do atentado terrorista na Espanha, como se deve falar de democracia no mundo? José Saramago - Não estaríamos vivendo em democracia mesmo que não se verificasse um só atentado. Evitemos confundir as coisas. Poderíamos gozar de uma democracia plena, isto é, política, econômica e cultural, e ainda assim sermos alvo de atentados com origem precisamente nos inimigos da democracia. Quem tem a culpa pelo fato de a democracia não ser o que deveria ser são os que fizeram dela uma mera fachada, um artifício em que ao cidadão apenas está permitido substituir um governo por outro, deixando intacto o sistema. Depois da cegueira, a lucidez: é possível apontar para um caminho tranqüilizador ou é justamente o contrário? Não há nenhum caminho tranqüilizador à nossa espera. Se o queremos, teremos de construí-lo com as nossas mãos. O poder econômico governa o mundo, e governa-o para que sirvamos aos seus interesses e aumentemos os seus lucros. É absurdo continuar a papaguear a palavra democracia quando o poder real, autêntico e único - o poder econômico - não é democrático. Os governos, digo-o pela milésima vez, tornaram-se comissários políticos do poder econômico. A discussão sobre a perda da identidade é uma conseqüência em sua obra, depois de tratar sobre a falta de visão do mundo (Ensaio sobre a Cegueira) e a incapacidade de viver na sociedade de consumo (A Caverna)? Perder ou não perder a identidade é um tema importante, sem dúvida, capaz de produzir literatura e filosofia em grandes quantidades e da melhor qualidade, mas creio que temos questões mais urgentes a resolver. De quatro em quatro segundos morre uma pessoa de fome. Diante desse drama, discutir identidades parece-se muito com o velho debate sobre o sexo dos anjos. A mídia, que "tem parte ativa na preparação dos desastres" (como está no livro), não passa realmente de organizações mais preocupadas em conseguir títulos inflamados do que apurar a verdade e a essência dos fatos? Seria ela também uma propagadora dos conflitos mundiais? Não digo que a mídia seja propagadora dos conflitos mundiais. Aliás, dizer mídia, sem mais nem menos, é uma abstração. O que conta são os jornalistas, as pessoas. E essas são boas ou más, inteligentes ou estúpidas, honestas ou desonestas, como toda a gente. O pior jornalista é aquele que se comporta como um camaleão, sempre preparado para mudar de cor conforme o ambiente. A lógica empresarial das tiragens e das audiências convida inevitavelmente ao sensacionalismo, à manobra rasteira, ao compadrio, aos pactos ocultos. Não há muita política nas colunas dos jornais, o que há é muitos políticos. Ambições, em vez de idéias. Como gostaria de ver classificada sua obra: novela, fábula, sátira ou tragédia? Eu próprio disse que o Ensaio sobre a Lucidez é, ao mesmo tempo, uma fábula, uma sátira e uma tragédia. Quis que a fábula fosse uma sátira, mas não pude evitar que fosse também uma tragédia. Como a vida.

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