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Sangue nas mãos

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Se ela fosse uma vampira, já poderia ter sido liquidada com uma estaca no peito. Mas guerra é guerra - e a Civil Espanhola continua perturbando até hoje a vida de quem nasceu muitos anos depois de seu término oficial, em 1939. Sua última baixa foi o ex-juiz Baltasar Garzón, nêmesis dos falangistas com sangue nas mãos, profissionalmente executado meses atrás, sob aplausos da direita e de quem teme pagar por crimes cometidos até mesmo em nome de Deus. Minto. Sua última baixa foi a História; ou, melhor dizendo, o rigor histórico.No verbete sobre Francisco Franco no Dicionário Biográfico Espanhol da Real Academia da História, o ex-ditador não é tratado como tal, mas como um estadista tout court. Seria um erro de avaliação venial fosse o dicionário um empreendimento editorial privado, financiado por viúvas do franquismo, não uma obra monumental bancada pelo erário, que em quatro anos de execução consumiu € 6,4 milhões. Historiadores, acadêmicos, políticos e jornalistas vinham protestando contra a omissão do qualificativo "ditador" desde maio de 2011, quando saíram os primeiros 25 dos 50 volumes da enciclopédia, ainda sem prazo para ser concluída pelos milhares de especialistas contratados para o projeto. "Uma ofensa à inteligência e à cultura democrática", assim sintetizou um furioso historiador madrilenho a impressão generalizada de seus pares. Ano passado, o ex-presidente Zapatero suspendeu a subvenção temporariamente, mas com a volta do Partido Popular ao poder, mais € 193 mil foram aprovados, em março deste ano. O PP, vale lembrar, foi fundado na década de 1970 por Manuel Fraga Iribarne, ex-ministro de Franco e seu herdeiro ideológico. Na semana passada, a Real Academia pôs uma pedra sobre a discussão: nenhuma alteração será feita no verbete sobre Franco, capciosamente entregue a uma figura suspeitíssima, o historiador Luis Suárez Fernández. Ex-integrante do regime franquista, membro da Fundação Francisco Franco e presidente da Irmandade do Vale dos Caídos (aquele mausoléu-monumento kitsch construído com o suor de 14 mil prisioneiros republicanos, onde o ditador repousa o sono eterno), Fernández não podia ter sido sequer cogitado para o serviço. A seu ver, Franco montou "apenas" um regime autoritário, mas não totalitário, tese somente defensável se omitidos os julgamento sumários e as execuções impostos pelo ditador, durante e depois da Guerra Civil. Dos muitos relatos que li sobre a mais terrível guerra intestina do século 20 (Hemingway, George Orwell, vários espanhóis), nenhum me impressionou mais que o recente The Spanish Holocaust, do hispanista britânico Paul Preston. São 700 páginas de puro horror, fascinante narrativa e acachapante documentação. O subtítulo da edição em inglês (Inquisição e Extermínio no Século 20), além de evocar procedentes similaridades com o modus operandi do Santo Ofício, é mais abrangente que o da tradução espanhola (Ódio e Extermínio Durante a Guerra Civil e Depois), bem mais objetivo. O segundo advérbio faz a diferença. A fúria genocida dos vencedores não respeitou os tempos de paz. A ditadura franquista durou mais do que os 34 anos em que Franco esteve efetivamente no comando do país. Preston dedicou a vida a pesquisar e devassar a Guerra Civil espanhola e seus protagonistas. Escreveu uma biografia devastadora de Franco (El Grand Manipulador), comparando-o aos tiranos de seu tempo (Stalin, Hitler, Mao) e a cesaristas mais recentes, como Fidel. Desmontou a visão hagiográfica que o apresenta como um gênio militar e político, que salvou os espanhóis do comunismo e da 2.ª Guerra, abrindo as portas do país para a modernidade. Cauteloso, astucioso, manipulador, Franco inventou para si diversas máscaras: de legionário cinematográfico, estilo Beau Geste, a "pai da pátria", a derradeira do estoque. Tímido, feio, baixinho, mirrado, voz estridente, refugiou-se na fantasia. Tinha um lado panaca, que às vezes se sobrepunha aos demais. Em 1940 comprou de um vigarista austríaco o segredo de uma "gasolina instantânea", extraída da água de um rio espanhol. Embora aficionado de loterias, jamais, que se saiba, comprou um bilhete premiado.Friamente cruel, era implacável com os inimigos. E com quem dele discordasse. Ainda estava no Marrocos, aquecendo os motores para invadir a Espanha e derrubar o governo republicano democraticamente eleito em fevereiro de 1936, quando mandou fuzilar um legionário que se queixara da qualidade do rancho servido no acampamento. O ditador demorou um bocado para dar seu último suspiro, em novembro de 1975. Durante três meses, o comediante Chevy Chase abriu seu telenoticiário no Saturday Night Live com a seguinte manchete: "Premier Francisco Franco is still seriously dead". Entrava semana, saía semana, e o premiê espanhol "continuava seriamente morto". Hilário. Foi a única coisa engraçada que o generalíssimo involuntariamente produziu na vida.O franquismo não foi enterrado com o caudilho porque, lastimavelmente, sobreviveu ao criador. Prolongou sua agonia até, pelo menos, o frustrado golpe do tenente-coronel Antonio Tejero Molina, em 23 de fevereiro de 1981. Molina invadiu a Câmara dos Deputados, em Madri, para melar na marra a transição da Espanha para a democracia. Acabou atrás das grades. Esse ato de patética truculência caudilhesca é o tema do último romance de Javier Cercas, Anatomia de Um Instante, que a Editora Globo acaba de traduzir e o autor, que ganhou merecida fama internacional com uma ficção ambientada na Guerra Civil, Os Soldados de Salamina, virá lançar na próxima Flip.

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