Samba: o dono do corpo

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Por Redação
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Nei Lopes& SambaDIA 30/06CLAUDIA ASSEFELETRÔNICADIA 07/07PATRICIA PALUMBOMPBDIA 14/07ROBERTO MUGGIATIJAZZDIA 21/07GILBERTO MENDESERUDITOAo difundir esse pensamento no título de um de seus livros (Samba, o Dono do Corpo, de 1998), o grande Muniz Sodré, mestre da Escola de Comunicação da UFRJ, expunha uma formulação filosófica tipicamente africana. Segundo a ideia contida no título, a música não é somente uma arte da alma e do espírito, mas também uma arte corporal. Por isso é que, antes de ser principalmente canção popular e mesmo forma de socialização, o samba foi dança.Lembremos que a coreografia do samba urbano, desenvolvida e difundida a partir do Rio de Janeiro, compreende, na atualidade, diversas formas (samba de salão, samba em cortejo, bailado de mestre-sala e porta-bandeira etc) entre as quais a performance livre dos passistas solistas, desenvolvida a partir da dança do samba de roda baiano e muitas vezes incorporando figurações acrobáticas.Um outro livro, Dança do Samba, Exercício do Prazer, do jornalista José Carlos Rego, talvez já referido neste espaço, é uma alentada e inusitada fonte sobre essa arte. Nele, o autor registra um dado histórico fundamental, que é a origem da performance coreográfica mencionada. Segundo Rego, o nascimento da figura do passista de samba remonta à década de 1940; mas foi recebida com protestos, pois, no samba daquela época, "passinho" era "coisa de mulher".Na década seguinte, demolindo o preconceito, o portelense Tijolo (Alexandre de Jesus) levava o samba no pé do palco da histórica boate Night and Day para o desfile da avenida. E o fazia de forma tão inventiva que era tido como "maluco", inaugurando um estilo altamente inventivo, depois imitado por inúmeros jovens bailarinos nos carnavais do Rio, de São Paulo e outros grandes centros.Observemos agora que, no momento deste texto, um novo tipo de dança, surgido há pouco tempo no âmbito do funk carioca e ganhando visibilidade via internet, vem se tornando objeto de estudos acadêmicos e de reportagens em jornais e revistas de grande circulação. Trata-se do "passinho do menor" ou simplesmente "passinho", no qual se combinam elementos da break dance com figurações de frevo e também da dança do samba, na forma dominante, até a década de 70, nas performances acrobáticas dos passistas das escolas. Essas explosões espontâneas de criatividade, entretanto, vistas como prejudiciais aos quesitos "de resultados", foram banidas do competitivo espetáculo do carnaval. Para as regras atuais, a dança incomoda e atrapalha: o único quesito que a convalida é a burocrática exibição do casal mestre-sala e porta-bandeira.Lembremos agora que as danças atléticas e acrobáticas são um ponto importante da tradição africana. Segundo a filosofia que sustenta essa tradição, a dança - nas palavras do musicólogo ugandense Solomon Mbabi-Katana - deve ser "um estado em que o dançarino se vista das forças vitais que gravitam em torno de si, para estar em harmonia com os ritmos do cosmo, identificando-se com eles e participando da ordem universal". É claro que há muito o samba deixou de ser africano para ser brasileiro e quase universal. Mas nessa quase universalidade - expressa principalmente pela enorme difusão internacional da bossa-nova - ele mostra sua maleabilidade e seu incrível mimetismo, sua capacidade camaleônica de se disfarçar, mudando de forma e parecendo outra música. A partir daí, fechamos este texto manifestando uma esperança.Quem sabe, agora, com o reconhecimento, pelas tais "instâncias legitimadoras" das excelências do "passinho do menor" as escolas de samba não se sensibilizam e trazem de volta ao seu show aquelas exibições, realmente espetaculares, dos jovens passistas de tempos atrás. Afinal, as piruetas de hoje têm tudo a ver com as "letras", "lambretas", "leques", "patinetes", "tesouras" etc. descritas no livro do saudoso J. C. Rego! Quem sabe, então, num próximo carnaval, a nova dança não adentra a avenida, embalada pelo "batidão" vigoroso do samba "funkeado" e valendo ponto!?Isso ocorrendo, vai-se configurar mais uma "volta por cima", mais uma demonstração da voracidade antropofágica do "Dono do Corpo", dança-matriz de todas as danças brasileiras, que além de tudo, é exemplo de sustentabilidade (termo do momento), pois se mantém de pé indefinidamente, sem esgotar as reservas ou comprometer o futuro da cultura do povo brasileiro.

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